Tem-se a impressão que a “ficha” dos brasileiros ainda não caiu quanto ao que ocorreu, de fato, na reforma trabalhista. É provável que muitos só se darão conta quando receberem um comunicado de dispensa (demissão).
Isso porque, diversas empresas já estão realizando consultorias, a fim de renovar seus quadros de funcionários, a fim que os novos trabalhadores entrem já sob a nova regra. Em suma, muitas empresas ficarão livres dos encargos trabalhistas, previstos na CLT. É uma escolha lógica.
Talvez, o estranho desconhecimento ou desinteresse da população seja, também, em razão da falta de transparência da grande mídia, que, em linhas gerais, está sendo “omissa”, quanto à verdade, acerca da reforma. É o que se percebe dos comentários dos jornalistas e dos entrevistados que são escolhidos a falar.
Uma análise técnica-jurídica da reforma trabalhista tornará muito evidente um gritante prejuízo aos trabalhadores. Assim, a análise jurídica pode ser confundida com “tese de esquerda”. Contudo, desde já, ressalte-se que, a abordagem foi realizada sem influências ideológicas ou partidárias.
Para evitar más-interpretações, esclareça que, a reforma trabalhista era, sim, necessária, bem como a chamada modernização e estímulo à criação de empregos. No entanto, não foi o que ocorreu, como se verá adiante.
Para demonstrar imparcialidade, o presente texto transcreverá um parecer (carta) extraído de associações de juízes trabalhistas e juristas especialistas em direito do trabalho. O trabalho contém a opinião de magistrados, que lidam, diariamente, com as relações do trabalho. Logo, não se trata de opinião de políticos que representam determinados interesses, tampouco da grande mídia ou partidários.
Em outras palavras, teremos um parecer de juízes trabalhistas, procuradores e juristas especialistas que “respiram” todos os dias a realidade nua e crua das relações trabalhistas.
Trabalho autônomo
A reforma trabalhista criou uma figura chamada “autônomo exclusivo”. Na opinião de muitos juristas, essa foi a maior afronta à Constituição Federal, no tocante aos direitos trabalhistas.
Isso porque, o trabalhador poderá prestar serviços de forma exclusiva e contínua para uma determinada empresa, sem vínculo empregatício (sem registro em carteira). É dizer, sem receber qualquer direito trabalhista previsto na CLT, como férias, 13º, FGTS, aviso-prévio, horas-extras, seguro-desemprego etc.
A prática de contratar trabalhadores como autônomos, para evitar o pagamentos dos direitos trabalhistas, sempre foi utilizada por empresas. É o que os juristas chamam de “pejotização”. Entretanto, a Justiça do Trabalho, na maioria dos casos, declarava nulo o contrato por fraude à CLT e condenava o empregador a pagar todos os direitos trabalhistas devidos. Agora, contudo, a referida pejotização ganhou força de lei, segundos os especialistas.
Conveniente transcrever o que afirmou o procurador-geral do Trabalho, Ronaldo Fleury, à Revista Época Negócios:
“De acordo com o que está escrito na reforma, vai funcionar na base do vale-tudo”, diz o procurador-geral do Trabalho, Ronaldo Fleury. “Esse artigo não facilita a pejotização. Ele libera a pejotização. Qualquer um pode ser pejotizado – tanto o diretor como o faxineiro da empresa.”
Ainda nesse sentido, transcreve-se abaixo o parecer da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra):
“Na opinião da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra), o “autônomo exclusivo”, em si, já é uma contradição em termos. “Eu não contrato um autônomo que é exclusivo. Com a exclusividade, ele perde a autonomia”, afirma a juíza Noemia Porto, vice-presidente da Anamatra. “É bastante polêmico. Eu emprego alguém como autônomo exclusivo e consigo com isso retirar direitos básicos, como férias, 13º, FGTS, proteção contra demissão e assim por diante”. (fonte: Revista Época Negócios).
O polêmico texto está descrito no artigo 442-B, da Lei nº 13.467/2017 (que alterou a CLT):
“A contratação do autônomo, cumpridas por este todas as formalidades legais, com ou sem exclusividade, de forma contínua ou não, afasta a qualidade de empregado prevista no art. 3º desta Consolidação”.
Por fim, transcreve-se abaixo um trecho maior do parecer das associações de magistrados e procures do trabalho, em relação ao trabalho autônomo, alterado pela reforma trabalhista:
“A proposta possibilita a existência da figura do autônomo prestando serviços em regime de exclusividade, ou seja, a um só tomador do seu serviço, e de forma contínua, o que certamente fará com que empregados sejam dispensados e recontratados como falsos autônomos, com pessoalidade, não eventualidade, onerosidade e subordinação, ou seja, com a presença dos elementos configuradores da relação de emprego.
Sabe-se que o trabalhador autônomo não possui contrato de trabalho registrado em sua CTPS, não possuindo, portanto, grande parte dos direitos previstos no artigo 7º da Constituição Federal, tais como salário mínimo, férias, 13º salário, FGTS, jornada de trabalho, horas extras, dentre outros.
A condição de autônomo, no âmbito das relações de trabalho regidas pela CLT, é a exceção ao contrato de trabalho e a própria negação deste. No dispositivo em destaque, o autônomo é tratado como categoria, que existe, mesmo que apenas formalmente, pois se caracterizará ainda que o trabalhador trabalhe de forma contínua e com exclusividade para um determinado empregador. Ademais, ao remeter-se a “cumpridas as formalidades legais” nada expressa sobre o que seria característico do autônomo. Ao contrário, infere-se do texto proposto que mesmo diante do elemento da não eventualidade da prestação de serviço, da onerosidade, requisitos legais do contrato de trabalho, e com a existência de subordinação, o trabalhador contratado como autônomo, e só por isso, não será reconhecido como empregado.
Assim, o artigo 442-B, além de contrariar o princípio da primazia da realidade, que informa o direito do trabalho, atinge também o disposto no art. 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal, que garante o acesso à justiça, pois obsta o reconhecimento da condição de empregado ao trabalhador contratado como autônomo, ainda que caracterizada, na realidade, a relação de emprego, nos termos do art. 3º da CLT. Fere, ademais, o art. 7º, inciso I, da Constituição, que assegura a trabalhadores urbanos e rurais a “relação de emprego protegida contra despedida arbitrária ou sem justa causa, nos termos de lei complementar, que preverá indenização compensatória, dentre outros direitos”, na medida em que retira o próprio direito à relação de emprego e seus consectários do trabalhador contratado como autônomo, ainda que este trabalhe em regime de não eventualidade e com exclusividade para o empregador. Exclui o trabalhador da proteção trabalhista, prevista nos incisos do art. 7º da Constituição, e também da Previdência Social. Daí a sua inconstitucionalidade.
Da mesma forma, a proposta possibilita, com a ampliação da prestação de serviços em todos os tipos de atividades da empresa, inclusive a sua principal, que empregados sejam dispensados e passem a prestar os mesmos serviços como falsas pessoas jurídicas, precisando para isso cumprir tão somente os seguintes requisitos: inscrição no Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica, registro na junta comercial e um capital de R$ 10.000,00 (dez mil reais), podendo, nesse caso, prestar serviços sozinho ou com até dez empregados” Fonte: Anamatra (Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho).
Adriano Martins Pinheiro é advogado em São Paulo, articulista e palestrante.