PROCURADORIA ILÍCITA | USURPAÇÃO DE FUNÇÕES | FALSAS DECLARAÇÕES (ACÓRDÃO)

PROCURADORIA ILÍCITA | USURPAÇÃO DE FUNÇÕES | FALSAS DECLARAÇÕES (ACÓRDÃO)

Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa

155/15.2TDLSB-A-3ª
Relator: A. AUGUSTO LOURENÇO
Descritores: CRIME DE FALSAS DECLARAÇÕES
USURPAÇÃO DE FUNÇÕES
PROCURADORIA ILÍCITA
NÃO PRONÚNCIA

1.– Comete apenas o crime de falsas declarações p. e p. pelo artº 348º-A do cód. penal, a arguida que acompanhando um amigo a uma esquadra de Polícia, invoca perante a autoridade a falsa qualidade de advogada, levando aquela a acreditar que o era de facto, mas que não pratica nenhum acto exclusivo da profissão de Advogado.

2.– Nas circunstâncias descritas nos autos é de afastar a imputação pelos crimes de usurpação de funções, p. e p. pelo artº 358º do cód. penal e de procuradoria ilícita p. e p. pelo art. 7º, nº 1, do DL nº 49/2004 de 24 de Agosto.

3.– No crime de usurpação de funções previsto no artigo 358º do cód. penal, o bem jurídico protegido consiste na integridade ou intangibilidade do sistema oficial de provimento em funções públicas ou em profissões de especial interesse como é o caso da Advocacia.

4.– O objecto da acção no crime de usurpação de funções, assinalado nas alíneas a) e b), do artº 358º do cód. penal ou mais precisamente o seu elemento objectivo e material, concretiza-se em duas situações bem distintas.
a)- Por um lado exercer funções ou praticar actos próprios de funcionários, (cfr. artº 386º do cód. penal) comandantes militares ou de forças militarizadas; e,
b)- Por outro, exercer profissão ou praticar acto, para a qual que seja necessário título ou o preenchimento de certas condições.

5.– No que concerne ao elemento subjectivo, torna-se necessário provar-se:
a)- Que o agente invoque a qualidade de funcionário ou de comandante militar ou de forças militarizadas, sabendo que as não possui; e,
b)- que o agente se arrogue a posse das condições exigidas para o desempenho de determinada profissão, sabendo que não as possui.

6.– O crime de procuradoria ilícita p. e p. art. 7º, nº 1, do DL nº 49/2004 de 24 de Agosto, tutela a integridade ou a intangibilidade do sistema oficial instituído para a prática de actos próprios das profissões dos Advogados e Solicitadores, por se considerarem estas de especial interesse público.

7.– Ao consagrar a obrigatoriedade de inscrição na Ordem dos Advogados para a prática de actos próprios de advogados, o legislador visou exactamente o interesse público subjacente à incriminação da procuradoria ilícita e devolveu-a àquela associação para que a regulamente, fiscalize e prossiga.

Acordam, em conferência, os Juízes da 3ª Secção Criminal do
Tribunal da Relação de Lisboa.

RELATÓRIO:

No âmbito do processo nº …/… do Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa – J…, por decisão instrutória de 30.04.2018, decidiu o sr. Juiz de Instrução Criminal não pronunciar a arguida, M… C… R… V… e o arguido, M… P… R… pela prática dos crimes de usurpação de funções, p. e p. pelo artº 358º, b), do cód. penal; de procuradoria ilícita, p. e p. pelo artº 7º, nº 1, do DL nº 49/2004 de 24 de Agosto, introdução em lugar vedado ao público, p. e p. pelo artº 191º do cód. penal e o arguido M… R…, também pelo crime de falsas declarações, p. e p. pelo artº 348º-A nº 1 do cód. penal, nos termos da decisão que adiante se transcreve integralmente.
*

Inconformado com a decisão de não pronúncia dos arguidos, veio o assistente, José A… P… F…, interpor o recurso constante de fls. 518 a 537, tendo apresentado as seguintes conclusões:

a)- Quanto à não pronúncia pelos crimes de procuradoria ilícita e usurpação de funções, a decisão ora posta em crise considera que se verificou comprovada a factualidade descrita pelo Recorrente no RAI, face à prova produzida, com excepção da indicação pelo arguido de que a arguida era sua advogada perante as autoridades policiais.
b)- No entanto, a decisão considera que juridicamente os factos constantes do RAI não integram a descrição de qualquer incriminação cuja prática o Assistente pretende atribuir aos arguidos.
c)- Antes de mais, nos termos do art. 1º do DL nº 49/2004 de 24 de Agosto, apenas os licenciados em Direito com inscrição em vigor na Ordem dos Advogados e os solicitadores inscritos na Câmara dos Solicitadores podem praticar os actos próprios dos advogados e dos solicitadores.
d)- Por sua vez, o art. 1º nº 9, do mesmo diploma, considera que são também actos próprios dos advogados todos aqueles que resultem do exercício do direito dos cidadãos a fazer-se acompanhar por advogado perante qualquer autoridade.

e)- Em termos factuais, no dia 1 de Agosto de 2015, a arguida dirigiu-se com o arguido M… R…, a uma esquadra da Polícia de Segurança Pública e solicitaram a presença da Polícia Municipal no local, para efeitos do exercício do direito de reclamação pelo ruído provocado pelos trabalhos de construção, declarações da arguida a fls. 87/88.

f)- Nesse mesmo dia, pelas 13:50h, os agentes da Polícia Municipal, José M… G… e José M… C… B… (melhor identificados nos autos), deslocaram-se ao local para fiscalização da obra, face à reclamação apresentada pelo arguido, tudo conforme certidão do auto da Polícia Municipal, junto no Apenso A e depoimento testemunhal a fls. 84/87.

g)- No local, a arguida acompanhada pelo arguido e na sua presença identificou-se junto das autoridades policiais, como sua advogada, que por sua vez solicitou ao senhor V… para abrir a porta de entrada à polícia, conforme consta da certidão do auto da Polícia Municipal, junto no Apenso A e doc. 4 junto com a queixa-crime.

h)- Sendo que o Recorrente, disponibilizou toda a documentação do processo de licenciamento da obra, nomeadamente o alvará emitido pela Câmara, constando do auto de reclamação que os agentes constataram que não se encontrava ninguém a trabalhar no local, conforme Informação nº 37425.15.11.4, Apenso A.

i)- Em seguida, o Recorrente solicitou à arguida que se identificasse, o que esta recusou e, nessa sequência, solicitou aos agentes policiais que procedessem ao auto de identificação, conforme depoimento testemunhal de José B…, a fls. 167/168.

j)- A decisão ora recorrida simplesmente ignora que o arguido declarou ao agente policial que a arguida era sua advogada, conforme decorre do depoimento do agente da Polícia Municipal, José G… C…:
– “Aí foi contactado pelo reclamante que se fazia acompanhar de uma senhora que disse ser sua advogada“, cfr. fls. 84/85.

k)- Ou seja, o arguido identificou expressamente a arguida, que o acompanhava, como sua advogada e esta assumiu essa qualidade e em nenhum momento o arguido negou essa qualidade invocada pela arguida, antes pelo contrário, quer na esquadra onde formalizou a queixa, quer no local, praticou actos que pressupõem a existência de um mandato conferido à mesma.

l)- Assim, carece de fundamento a conclusão da decisão recorrida acerca da não demonstração da indicação pelo arguido de que a arguida era sua advogada perante as autoridades policiais ou que tal afirmação carece de suporte indiciário no processo.
m)- A Arguida quando se deslocou à esquadra e depois no local, quando acompanhou a acção de fiscalização da autoridade municipal, não estava a fazer companhia ao Arguido.
n)- A arguida acompanhou o arguido na qualidade de advogada e praticou actos concretos, junto de autoridades administrativas e policiais, como advogada e não como acompanhante.

o)- No caso concreto, os actos próprios da profissão de advogado praticados pela arguida foram os seguintes:

(i)- Prestação de declarações em nome do seu cliente às autoridades policiais, onde acompanhou aquele, no dia 01/08/2015;
(ii)- Formalização da queixa em representação do arguido, por ruído na execução dos trabalhos de construção;
(iii)- Na mesma data, na qualidade invocada de advogada prestou declarações em nome do seu cliente e nessa qualidade acompanhou dentro da propriedade a actividade fiscalizadora dos agentes policiais, verificando a documentação de licenciamento disponibilizada pelo assistente;
(iv)- Deu instruções, quando acompanhada pelo agente policial, para o Sr. V… abrir a porta para fiscalização a obra, na qualidade de advogada.

p)- Dúvidas não podem restar, que ao praticar os actos atrás descritos, a arguida praticou actos próprios do advogado, nos termos do art. 1º nº 9 do DL nº 49/2004 de 24 de Agosto.
q)- A arguida praticou actos de assistência jurídica e não se limitou a pedir para abrir uma porta, conforme conclui a decisão posta em crise.
r)- Os factos foram praticados em co-autoria, porque como resulta das próprias declarações do arguido a fls. 67/71, este não ignorava que a arguida não era advogada.
s)- A decisão ora recorrida considera que em relação ao crime de usurpação de funções a arguida não praticou actos próprios de advogados, tendo-se apenas a arrogado de tal qualidade.
t)- Ora, nas datas e locais concretos e identificados, a arguida invocou ilegitimamente um título exigido para o exercício de profissão de advogado e praticou os actos próprios desta profissão, nomeadamente prestou declarações em nome do alegado cliente, formalizou a queixa por ruído na execução de trabalhos de construção, acompanhou as autoridades policiais em representação do seu cliente e verificou documentação de licenciamento da obra no local de execução da mesma.
u)- Os actos praticados pela arguida só o poderiam ser por pessoa que invocasse a qualidade de advogado e a participação da arguida nos factos foi feita a coberto do direito que assistia ao arguido de se fazer acompanhar por advogado na queixa apresentada e na acção de fiscalização levada a cabo pelos agentes da polícia municipal.
v)- É elemento constitutivo do crime de usurpação de funções, na modalidade de exercício ilegal de profissão, que o agente se arrogue possuir o título ou condições exigidas por lei para o exercício da profissão, bastando, porém, que o faça implicitamente, ou seja, praticando os actos próprios da profissão.
w)- Encontrando-se os factos e os actos próprios de advogados devidamente descritos no RAI, não poderia a decisão recorrida concluir que no RAI do assistente não se encontram descritos os elementos típicos do crime de usurpação de funções.
x)- O despacho de acusação e arquivamento do inquérito, apenas acusou a arguida M…. C… R… V…, pelo crime de falsas declarações, p. p. pelo art. 348ºA nº 1 do cód. penal.
y)- A decisão ora recorrida não leva em consideração a conduta do arguido, descrevendo que de acordo com o RAI, a identificação da arguida foi por ela fornecida perante a Polícia Municipal, bem como de acordo com o RAI não foi o arguido quem atestou tal qualidade.
z)- O despacho posto em causa considera inclusivamente que não foi o arguido quem atestou tal qualidade da arguida, não tendo este indicado às autoridades policiais que a arguida era sua advogada e que em rigor ninguém atestou a qualidade de advogada da arguida, porque nos termos do RAI não foi solicitada ou apresentada qualquer prova de tal situação profissional.

aa)- Mais uma vez, a decisão recorrida ignora a prova produzida, nomeadamente que foi pedida identificação à arguida pelo Recorrente e que por esta se ter recusado é que o mesmo solicitou aos agentes da polícia para procederem à identificação da arguida,
bb)- Aliás, o depoimento do agente policial, José B…, esclareceu que foi a pedido do Recorrente que identificou a arguida, a fls. 167/168.
cc)- Embora a decisão em causa faça referência ao testemunho a fls. 63, onde essa testemunha refere expressamente que foi pedida, mas nunca foi exibida a prova de que a arguida era advogada, não retira as devidas consequências da apreciação da prova.
dd)- Por sua vez a arguida, na presença do arguido, e arrogando a qualidade de advogada deste, na presença dos agentes policiais (José B… e José C…), solicitou ao senhor V…, para abrir a porta de entrada.
ee)- A prova documental que atesta tal facto resulta do auto de informação da Polícia Municipal, conforme consta da certidão do auto da Polícia Municipal, junta como doc. 4 na participação criminal e que consta do Apenso A, bem como pelo depoimento testemunhal a fls. 65/66.
ff)- A qualidade invocada de advogada resulta das próprias declarações e informações prestadas pelos arguidos aos agentes policiais.
gg)- Ambos os arguidos sabiam que as declarações em como a arguida era advogada não correspondiam à verdade, fazendo crer às autoridades policiais que a arguida era advogada e que nessa qualidade poderia assistir o arguido no exercício do seu direito de queixa.
hh)- A conduta do arguido, face aos factos concretos, evidencia a sua responsabilidade, já que a arguida agiu em seu nome e representação, na sua presença.
ii)- Pelo que, no entender do Recorrente também o arguido, deveria ser pronunciado, em co-autoria, pelo crime de falsas declarações, p. e p. pelo art. 348º-A nº 1 do cód. penal.
jj)- Analisada criticamente a prova recolhida, testemunhal e documental, nos termos supra expostos, impõe-se a conclusão de que foram recolhidos indícios suficientes que permitem «formar a convicção da forte probabilidade ou possibilidade razoável» de que o arguido seja responsável pelos factos narrados no RAI, pelo que, consequentemente, o despacho recorrido não pode manter-se.
kk)- Assim, se concluiu que o Mmº, Juiz de Instrução fez uma errada apreciação e aplicação, entre mais, das normas do art. 283º nº 2, art. 286º nº 1, art. 308º nº 1 e al. c), do nº 2 do artigo 410º, todos do Código de Processo Penal, bem como do art. 79º do DL nº 49/2004 de 24 de Agosto, art. 358º al. b) e art. 348º-A nº 1, estes do Código Penal.
Termos em que, pelo exposto, se requer a Vªs Exªs Venerandos Juízes Desembargadores que seja dado provimento ao recurso interposto e, consequentemente, seja revogada a decisão recorrida, a qual deve ser substituída por outra que pronuncie os arguidos, em co­autoria, pelo crime de procuradoria ilícita, p. e p. pelo art. 79º do DL nº 49/2004 de 24 de Agosto, pelo crime de usurpação de funções, p. e p. pelo art. 358º al. b) do cód. penal e o arguido pelo crime de falsas declarações, p. p. pelo art. 348º-A nº 1 do cód. penal, como é da mais inteira Justiça».
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O Ministério Público, em 1ª instância, respondeu ao recorrente, nos termos de fls. 544 a 548, defendendo a improcedência do recurso nos seguintes termos:

– «Não obstante, o modo e circunstâncias em que decorreu a intervenção da arguida M… C… V… leva a considerar a inocuidade do ato de acompanhamento, pois tratou­se de um ato isolado, realizado a pedido do arguido M… R…, seu amigo, num contexto de fraca intensidade de exercício de direito, em que a presença de advogado não representou uma garantia, pela especificidade técnico-jurídica da sua formação, de defesa cabal dos seus direitos e interesses legalmente protegidos. Isto é, o direito ao acompanhamento por advogado, está funcionalizado à defesa de direitos e interesses legalmente protegidos, acabando por constituir uma vertente da assistência por advogado.
– Assim, entendemos que a ação em concreto não foi idónea a atingir núcleo essencial do bem jurídico protegido pelo tipo de crime – o princípio da exclusividade para a prática de actos próprios da advocacia, como corolário do interesse público da profissão, traduzido pela necessidade da sua função social ser efetivada e garantida por profissionais com responsabilidades deontológicas tuteladas pelo poder disciplinar da associação pública [Ordem dos Advogados], a quem o Estado delegou o poder.
– Ou seja, a conduta concreta da arguida M… C… R… V… não atingiu o núcleo do juízo de ilicitude-típica, o específico sentido de desvalor jurídico-penal que é inerente ao tipo de crime. Noutra perspetiva, a conduta concreta da arguida não produziu um resultado especificamente abrangido pelo âmbito de proteção da norma, o que afasta a imputação objetiva.
– Afastada a ilicitude-típica do crime de procuradoria ilícita, fica prejudicada a apreciação do crime de usurpação de funções, pois, para a verificação da sua tipicidade não basta fazer passar-se, in casu, por advogado, quando o não é, sendo ainda necessário que pratique actos próprios dessa profissão (exercício de função alheia).
– No que diz respeito ao crime de falsas declarações, de que a arguida M… C… R… V… está acusada, não é de imputar o crime, em comparticipação (co-autoria), ao arguido M… R… porquanto a efetivação do crime radicou no ato de identificação daquela perante a autoridade policial – no que a arguida M… C… declarou sobre os dados relativos à sua identidade e profissão, o qual surge de forma imediata, sem que se possa dizer que tenha aqui intermediado qualquer acordo entre ambos, dirigido à execução do crime.
– Pelo exposto, entendemos que o recurso não merece provimento, confirmando-se a douta decisão recorrida».
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Responderam igualmente os arguidos, M… C… C… O… dos R… V… e M… P… A… R…, nos termos de fls. 576 a 589, defendendo a improcedência do recurso e concluindo:

«1.– O Recurso sob resposta deve ser liminarmente rejeitado na medida em que não se encontram cumpridos os requisitos materiais e formais exigidos no artigo 412º, nº 1 e 2, do cód. procº penal que poderiam, em tese, fundamentar a sua admissão.
2.– O Recorrente limitou-se a reproduzir os mesmos exactos termos do RAI por si apresentado, o qual já fora oportunamente, e em sede própria, apreciado pelo Tribunal a quo, no sentido do seu total indeferimento, não logrando demonstrar qualquer tipo de vício de que a decisão recorrida pudesse padecer e que carecesse agora de remediação por parte deste Tribunal.
3.– No entanto, caso assim não se entenda, deve o Recurso sob apreciação ser julgado totalmente improcedente por inexistência, nos presentes autos, de indícios aptos a preencher os tipos de crime de procuradoria ilícita, de usurpação de funções e de falsas declarações, neste último caso, quanto ao Recorrido, nem aliás qualquer outro tipo de crime.
4.– Efectivamente, tal como resulta da decisão instrutória, o Recorrido nunca poderá ser pronunciado pelo crime de falsas declarações, na medida em que o mesmo não teve sequer qualquer tipo de participação nos factos que alegadamente consubstanciam a prática desse crime por parte da Recorrida constantes da Denúncia e do RAI.
5.– Já quanto aos crimes de procuradoria ilícita e usurpação de funções, não se encontram igualmente descritos nos autos quaisquer factos dos quais pudesse resultar o preenchimento da incriminação daqueles crimes, tal como resulta já da decisão instrutória proferida pelo Tribunal a quo.
6.– Pelo que se impõe concluir que a decisão de não pronúncia proferida pelo Tribunal a quo não merece qualquer censura, impondo-se a sua manutenção, devendo, por isso, o Recurso sob apreciação ser julgado improcedente.
Nestes termos, e nos mais de Direito aplicáveis, deverá o Recurso ser liminarmente rejeitado e, caso assim não se entenda, julgado improcedente, confirmando-se, na íntegra, a decisão instrutória proferida pelo Tribunal a quo».
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Respondeu ainda a Assistente, Ordem dos Advogados, nos termos de fls. 549 a 556, defendendo a revogação da decisão recorrida e a sua substituição por outra que pronuncie os arguidos, concluindo:

1.– A douta decisão instrutória considerou “verificada a factualidade apresentada pelo assistente no seu RAI, com excepção da indicação pelo arguido de que a arguida era a sua advogada perante as autoridades policiais”.
2.– Todavia, o Senhor Agente da Polícia Municipal, José M… P… G… da C…, a fls. 84 dos autos, refere expressamente que “(…) no local foi contactado pelo reclamante que se fazia acompanhar de uma senhora que disse ser advogada”.
3.– Daqui se conclui que o arguido identificou a arguida como advogada e, consequentemente, à factualidade tida por verificada, extraída do douto Requerimento de Abertura da Instrução, deve acrescentar-se que “O arguido M… P… A… R…, sabendo que a arguida M… C… O… R… V… não era advogada, a identificou como tal ao Senhor Agente Municipal José M… P… G… da C…”.
4.– Perante a factualidade considerada verificada e a que se pretende ver como indiciada, deve a arguida M… C… e ser pronunciada por um crime de usurpação de funções, previsto e punido pela alínea b), do artigo 358º e o arguido M… R… por um crime de falsas declarações, previsto e punido pelo nº 1, do artigo 348º-A, ambos do Código Penal.
5.– Assim não tendo decidido, e com devido respeito por opinião contrária, a douta decisão instrutória interpretou incorrectamente o disposto no artigo 66º, nº 1, da Lei 145/2015 de 09 de Setembro, artigo 1º da Lei 49/2004, de 24 de Agosto, artigos 358º, alínea b) e 348º-A, nº 1, do Código Penal e o artigo 283º, nº 2 do Código de Processo Penal.
Termos em que, aderindo ao recurso apresentado pelo assistente José A… P… F…, deve o mesmo merecer provimento e, em consequência, revogar-se a decisão recorrida e substituir-se por outra que pronuncie os arguidos, conforme alegado, assim se fazendo Justiça».

Neste Tribunal, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta, emitiu o douto parecer de fls. 602 a 604, tendo subscrito a posição do Ministério Público em 1ª instância e defendido a improcedência do recurso.

O recurso foi tempestivo e legítimo.

Cumpre decidir.

DECISÃO RECORRIDA

«I.– Declaro encerrada a instrução.

II.– O Ministério Público acusou M… C… O… R… V… (id. a fls. 243) pela prática de um crime de falsas declarações p. e p. pelo art. 348º-A, nº 1, do Código Penal, e determinou o arquivamento dos presentes autos, considerando não existirem indícios suficientes, da prática pelos arguidos dos crimes de usurpação de funções, procuradoria ilícita, introdução em lugar vedado ao público e pelo arguido M… P… A… R… (id. a fls. 279) também de um crime de falsidade declarações (fls. 232 a 243).

O assistente José A… P… F… requereu a abertura da instrução (fls. 299 a 308) imputando aos arguidos os mencionados crimes pelos quais o Ministério Público determinou o arquivamento dos autos.
Após ter sido indeferida a instrução, pelo Tribunal da Relação de Lisboa foi determinada a abertura desta fase processual.

III.– Declarada aberta a instrução foi realizado o debate instrutório.

O tribunal é competente.
Inexistem nulidades, quaisquer excepções e questões prévias ou
incidentais que cumpra conhecer.
IV.– Como é consabido, a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação, ou, como é o caso, de arquivar o inquérito, em ordem a submeter ou não uma causa a julgamento (crt. 286º, nº 1 do Código de Processo Penal), cabendo a este Tribunal efectuar um juízo de probabilidade ou não de condenação, em sede de julgamento em face dos indícios recolhidos nas fases de inquérito e de instrução.

Nos presentes autos, tudo se reconduz essencialmente à apreciação das provas recolhidas no inquérito, onde foram recolhidos os indícios relevantes para a matéria de factos invocada pelo assistente.

Do ponto de vista do tribunal a prova testemunhal e documental concretamente identificada na acusação – fls. 246 – permite ter por verificada a factualidade apresentada pelo assistente no seu RAI, com excepção da indicação pelo arguido de que a arguida era a sua advogada perante as autoridades policiais.

Tal indicação, seja qual for o seu conteúdo, não apresenta qualquer suporte indiciário no processo.

No entanto, juridicamente tais factos do requerimento para a abertura da instrução não integram a descrição de qualquer incriminação cuja prática pretende atribuir aos arguidos (o arguido quanto ao crime de falsas declarações e a arguida quanto aos crimes de usurpação de funções e de procuradoria ilícita).

No seu requerimento para a abertura da instrução o assistente pretende imputar à arguida a prática dos crimes de procuradoria ilícita e de usurpação de funções.

O crime de procuradoria ilícita previsto no art. 7º, nº 1, do DL nº 49/2004 de 24 de Agosto é cometido por “Quem em violação do disposto no artigo 1º:

–a)- praticar actos próprios dos advogados e dos solicitadores;
–b)- Auxiliar ou colaborar na prática de actos próprios dos advogados e dos solicitadores”.

O art. 1º do mesmo diploma define quem pode praticar actos próprios de advogados e solicitadores, e estabelece no seu nº 9 (é a disposição invocada pelo assistente) que “São também actos próprios dos advogados todos aqueles que resultem do exercício do direito dos cidadãos a fazer-se acompanhar por advogado perante qualquer autoridade”.

Daqui pretende o assistente retirar que, por a arguida ter afirmado que era advogada e acompanhado o arguido a fazer uma reclamação, se encontra preenchida tal previsão legal.

Mas, não é possível concordar com essa conclusão.

Nos termos que são apresentados no RAI, a arguida, embora dizendo que era advogada, não fez mais do que acompanhar o arguido, nos mesmos termos possibilitados a qualquer pessoa não advogado ou solicitador.

A correcta interpretação do disposto no art. 1º, nº 9 do DL nº 49/2004 não é a de que constituem actos próprios dos advogados o acompanhamento de outra pessoa nos assuntos quem tenham de tratar; antes deve entender-se que apenas integram aquela categoria os que resultam do exercício de um direito legalmente consagrado de acompanhamento de advogado.

Assim, se alguém acompanha outra pessoa mas não o faz a coberto do direito de acompanhamento por advogado ou o acompanhante não tem efectiva intervenção na situação, não se encontra preenchida a previsão do referido art. 1º nº 9 do D. L. 49/2004.

Esta disposição legal é específica ao referir os actos que são resultado do exercício do direito de acompanhamento por advogado (nomeadamente quanto ao teor de uma inquirição ou ao aconselhamento do exercício do direito ao silêncio) e não o próprio e simples acompanhamento de alguém.

Ora, o assistente não descreve qualquer acto de assistência jurídica, mas apenas que aquela pediu para abrir uma porta.

Por isso, não se encontram descritos no requerimento para a abertura da instrução apresentado quaisquer factos de que podia depender o preenchimento da incriminação de procuradoria ilícita.
Por outro lado, pretende o assistente imputar à arguida a prática de um crime de usurpação de funções, p. e p. pelo art. 358º, b), do Código Penal.

Para praticar tal crime, que tem uma âmbito geral relativamente ao crime de procuradoria ilícita, é necessário exercer uma profissão ou praticar acto próprio de uma profissão para a qual a lei exige título ou preenchimento de certas condições, arrogando-se, expressa ou tacitamente, possuí-lo ou preenchê-las.

Do anteriormente exposto, em face do descrito no RAI, resulta já que não foi praticado qualquer acto próprio dos advogados, tendo-se a arguida apenas arrogado de tal qualidade.

Por isso, no RAI do assistente não se encontram descritos os elementos típicos da incriminação de usurpação de funções.

Finalmente, a assistente pretende atribuir ao arguido a prática de um crime de falsas declarações, p. e p. pelo art. 348º-A, nº 1, do Código Penal (de que a arguida está acusada), porque este sabia que a arguida não era advogada, mas que tinha invocado falsamente tal profissão nas circunstâncias referidas nos autos, o que ficou a constar de um auto elaborado pela Polícia Municipal.

Ora, esta incriminação prevê a conduta de quem declarar ou atestar falsamente à autoridade pública ou a funcionário no exercício das suas funções identidade, estado ou outra qualidade a que a lei atribua efeitos jurídicos, próprios ou alheios.

De acordo com o próprio RAI, a identificação da arguida foi por ela fornecida perante a Polícia Municipal, o que ficou a constar de auto.

Por um lado, de acordo com os indícios que confirmam este ponto, não foi o arguido quem atestou tal qualidade da arguida, não tendo este indicado às autoridades policiais que a arguida era a sua advogada; em rigor, esse facto não foi indiciado e ninguém atestou tal qualidade porque, nos termos do RAI, não foi solicitada ou apresentada qualquer prova legal de tal situação profissional (apesar de a testemunha de fls. 63 ter referido que foi solicitada e nunca apresentada a prova de que a arguida era advogada); por outro lado, não é descrito, nem resulta ostensivo da situação apresentada, que efeitos jurídicos resultam de uma mera indicação da qualidade fornecida, sendo este um elemento do tipo de crime em causa.

Por conseguinte, não se encontram indiciados ou descritos no RAI factos constitutivos também da incriminação de falsas declarações.
Por isso, os factos indiciados apenas podem conduzir a uma não pronúncia por qualquer dos crimes a que se refere o RAI.

Em face de tudo o exposto e nos termos do disposto no artº 308º, nº 1 do Código de Processo Penal:

– Não pronuncio, M… C… O… R… V… e M… P… A… R… pela prática dos crimes de usurpação de funções, procuradoria ilícita, introdução em lugar vedado ao público e o arguido M… P… A… R… também pela prática de um crime de falsas declarações p. e p. pelo art. 348º-A, nº 1, do Código Penal.

Notifique.

Após trânsito, comunique à Ordem dos Advogados e remeta ao tribunal de julgament.

FUNDAMENTOS.

O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões, extraídas pelo recorrente da respectiva motivação[1], sem prejuízo da apreciação das questões de conhecimento oficioso.
No caso concreto importa apreciar os fundamentos do despacho de não pronúncia dos arguidos M… C… O… R… V… e M… P… A… R… pela prática dos crimes de usurpação de funções, p. e p. pelo art. 358º, b), do cód. penal, de procuradoria ilícita, p. e p. pelo art. 7º, nº 1, do DL nº 49/2004 de 24 de Agosto e, relativamente ao arguido M… R…, pela prática de um crime de falsas declarações p. e p. pelo art. 348º-A, nº 1, do cód. penal, cometido em co-autoria.

DO DIREITO.

Em causa, no recurso interposto, está a decisão do sr. Juiz de Instrução Criminal, de não pronunciar os arguidos pelos crimes acima referidos, nos termos do requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente, José A… P… F…, secundado pela Ordem dos Advogados, relativamente à matéria denunciada que no seu entender indicia os crimes de procuradoria ilícita (art. 7º, nº 1, do DL nº 49/2004 de 24.08) e usurpação de funções (art. 358º, b), do cód. penal), por parte da arguida M… C… R… V… que o Ministério Público apenas acusou pelo crime de falsas declarações, p. e p. pelo art. 348º-A, nº 1, do cód. penal, mas que o recorrente pretende ver também imputado em co-autoria ao arguido M… R….

Na tese do sr. Juiz de Instrução Criminal, dos elementos factuais apurados não se indicia minimamente a prática pelos arguidos dos crimes supra citados, devido à ausência de elementos objectivos e subjectivos, constitutivos dos tipos de ilícitos referidos.

Vejamos a factualidade indiciada, com base na qual o recorrente pretende ver os arguidos pronunciados.

Resulta dos autos de inquérito que:

– “No dia 1 de Agosto de 2015, a arguida se dirigiu com o arguido M… R…, a uma esquadra da Polícia de Segurança Pública onde solicitaram a presença da Polícia Municipal no local, para efeitos do exercício do direito de reclamação pelo ruído provocado pelos trabalhos de construção, – cfr. declarações da arguida a fls. 87/88.
– Nesse mesmo dia, pelas 13H50, os agentes da Polícia Municipal, José M… G… C… e J… M… C… B… deslocaram-se ao local para fiscalização da obra, face à reclamação apresentada pelo arguido, – cfr. certidão do auto da Polícia Municipal, junto no Apenso A e depoimento testemunhal a fls. 84/87.
– No local, a arguida declarou às autoridades policiais que era Advogada do arguido e solicitou ao senhor V… para abrir a porta de entrada à polícia, conforme, – cfr. certidão do auto da Polícia Municipal, junto no Apenso A e doc. 4 junto com a queixa-crime.
– O Recorrente, disponibilizou então toda a documentação do processo de licenciamento da obra, nomeadamente o alvará emitido pela Câmara, constando do auto de reclamação que os agentes constataram que não se encontrava ninguém a trabalhar no local, – cfr. informação nº 37425.15.11.4, Apenso A.
– Em seguida, o Recorrente solicitou à arguida que se identificasse, o que esta recusou e, nessa sequência, solicitou aos agentes policiais que procedessem ao auto de identificação, – cfr. depoimento testemunhal de JB…, a fls. 167/168”.

Esta a factualidade que está em causa e com base na qual o recorrente pretende ver os arguidos pronunciados, alegando que o Tribunal “a quo” errou e “fez uma errada apreciação e aplicação, entre mais, das normas do art. 283º nº 2, art. 286º nº 1, art. 308º nº 1 e al. c), do nº 2 do artigo 410º, todos do Código de Processo Penal, bem como do art. 79º do DL nº 49/2004 de 24 de Agosto, art. 358º al. b) e art. 348º-A nº 1, estes do Código Penal”.

A questão que se coloca passa em primeiro lugar pela análise da previsão normativa dos crimes imputados, de procuradoria ilícita e de usurpação de funções.

Quanto ao crime de usurpação de funções, diz-nos o artº 358º do cód. penal:
«Quem:

a)- Sem para tal estar autorizado, exercer funções ou praticar actos próprios de funcionário, de comando militar ou de força de segurança pública, arrogando-se, expressa ou tacitamente, essa qualidade;
b)- Exercer profissão ou praticar acto próprio de uma profissão para a qual a lei exige título ou preenchimento de certas condições, arrogando-se, expressa ou tacitamente, possuí-lo ou preenchê-las, quando o não possui ou não as preenche; ou
c)- Continuar no exercício de funções públicas, depois de lhe ter sido oficialmente notificada demissão ou suspensão de funções, é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias».

Com efeito, no crime de usurpação de funções previsto no artigo 358º do cód. penal, o bem jurídico protegido consiste na integridade ou intangibilidade do sistema oficial de provimento em funções públicas ou em profissões de especial interesse como é o caso da Advocacia.

Assim, o objecto da acção assinalado nas alíneas a) e b), ou mais precisamente o seu elemento objectivo e material, concretiza-se em duas situações bem distintas.
a)- Por um lado exercer funções ou praticar actos próprios de funcionários[2], comandantes militares ou de forças militarizadas; e,
b)- Por outro, exercer profissão ou praticar acto, para a qual que seja necessário título ou o preenchimento de certas condições.

No que concerne ao elemento subjectivo, torna-se necessário provar-se:
a)- Que o agente invoque a qualidade de funcionário ou de comandante militar ou de forças militarizadas, sabendo que as não possui; e,
b)- Que o agente se arrogue a posse das condições exigidas para o desempenho de determinada profissão, sabendo que não as possui[3].

Diz-nos Paulo Pinto de Albuquerque em “ Comentário do Código Penal á luz da Constituição da República e da Convenção europeia dos Direitos do Homem”, 2ª edição actualizada, em relação ao crime de usurpação de funções, previsto e punido pelo artigo 358º do cód. penal, página 930, ponto 12, o seguinte:

– “ O tipo subjectivo admite o dolo directo e o dolo necessário não o dolo eventual. (…) Se o agente está convencido que tem a qualidade que se arroga, age em erro sobre um elemento normativo do tipo, que excluí o dolo (artigo 16º nº 1)”[4].
*

Quanto ao crime de procuradoria ilícita prevê-se no art. 7º, nº 1, do DL nº 49/2004 de 24 de Agosto que é cometido por:

– “Quem em violação do disposto no artigo 1º:
a)- Praticar actos próprios dos advogados e dos solicitadores;
b)- Auxiliar ou colaborar na prática de actos próprios dos advogados e dos solicitadores”.
Por sua vez, o artº 1º do mesmo diploma, define quem pode praticar actos próprios de advogados e solicitadores, referindo no nº 9: – “São também actos próprios dos advogados todos aqueles que resultem do exercício do direito dos cidadãos a fazer-se acompanhar por advogado perante qualquer autoridade”.

O crime de procuradoria ilícita tutela a integridade ou a intangibilidade do sistema oficial instituído para a prática de actos próprios das profissões dos Advogados e Solicitadores, por se considerarem estas de especial interesse público.

Ao consagrar a obrigatoriedade de inscrição na Ordem dos Advogados para a prática de actos próprios de advogados, o legislador visou exactamente o interesse público subjacente à incriminação da procuradoria ilícita e devolveu-a àquela associação para que a regulamente, fiscalize e prossiga.

O Estatuto da Ordem dos Advogados, nos artigos 61º a 63º, em conjugação com as normas citadas, da Lei nº 49/2004 de 24.08, definem o sentido e o alcance dos actos próprios dos advogados e dos solicitadores e tipifica o crime de procuradoria ilícita.

“Decorre destes normativos que, grosso modo, as funções do advogado respeitam a toda a actividade de representação do mandante, quer em tribunal (mandato forense), quer em negociações extrajudiciais com vista à constituição, à alteração ou à extinção de relações jurídicas, mas, de igual modo, podem traduzir-se na actividade de mera consulta jurídica, ou seja, de aconselhamento jurídico a solicitação de terceiro”, – cfr. Ac. S. T. J. de 17.04.2015, relatado pelo Sr. Conselheiro Raul Borges e disponível em www.dgsi.pt/stj.

No caso em apreço, ainda que se considerem indiciados os factos acima descritos, é de concluir que os mesmos não são suficientemente idóneos para ofender os bens jurídicos tutelados pelos dois crimes referidos de usurpação de funções e de procuradoria ilícita, uma vez que a conduta da arguida se traduziu em mera declaração de que era Advogada e acompanhava o amigo (co-arguido), que apenas num primeiro momento terão convencido as autoridades policiais e o ofendido da sua qualidade, mas que ao ser-lhe pedida a identificação e a mesma ter recusado, acabou por não ter objectivamente surtido nenhum efeito prático, que se evidenciasse e traduzisse a prática de uma acto próprio e exclusivo da profissão de advogado.

É certo que não deixa a sua conduta de merecer a tutela penal, mas apenas no que respeita a outro tipo de crime pelo qual foi acusada ou seja, o de falsas declarações, p. e p. pelo art. 348º-A, nº 1, do cód. penal.

A conduta da arguida M… C… R… V… não chegou sequer a preencher os elementos do tipo, de cada um dos crimes acima referidos. Não produziu um resultado especificamente abrangido pelo âmbito de proteção daquelas normas, o que afasta a imputação objetiva.

Ao contrário do que refere o recorrente no seu recurso, não resultou indiciado que a arguida:

– Tivesse prestado declarações em nome do seu cliente às autoridades policiais, mas apenas que o acompanhou no dia 01/08/2015 e lhes disse que era Advogada, sabendo que tal não correspondia à verdade;
– Que a arguida tivesse formalizado a queixa em representação do arguido;
– Que tivesse, na qualidade invocada de avogada prestado declarações em nome do seu cliente, mas apenas que o acompanhou, bem como às autoridades na diligência de fiscalização e com eles trocou palavras, o que é bem diferente;
– Parece que de facto pediu ao Sr. V… que para abrir a porta a fim de as autoridades fiscalizarem a obra. Mas este acto, em si, é totalmente irrelevante.

Os actos que praticou não configuram actos próprios do exercício da Advocacia, no contexto em que ocorreram, pois qualquer pessoa sem ser Advogado o poderia fazer na qualidade de amigo de outro. Tratou-se mais de uma apoio nessa qualidade, do que propriamente da prática de actos típicos e exclusivos do exercício de uma profissão que não exerce. O facto de invocar a qualidade de Advogada perante as autoridades e o recorrente, só por si não tem a virtualidade de alcançar a pretensão que este lhe quer dar. Antes nos parece ter servido apenas para reforçar esse tipo de “apoio de amiga”, perante terceiros, o que não deixa de ser crime, mas apenas de falsas declarações como atrás referimos.

Estes factos em nada se relacionam com o exercício da advocacia; as imputadas condutas não se mostram minimamente atinentes ao exercício pelo Advogado das suas funções profissionais, não traduzem a prática de qualquer acto próprio do advogado, pelo que não se pode sustentar, de modo algum, a indiciação pelos crimes de procuradoria ilícita e de usurpação de funções. Não se vislumbra nenhum elemento que se relacione directa ou indirectamente com o exercício de funções profissionais do Advogado, em particular com o exercício de funções de representação do mandante (em juízo ou em negociações) ou de aconselhamento jurídico. Nem tão pouco existe, qualquer elemento factual, que demonstre o exercício de funções de representação forense ou negocial.

Não procede a pretensão do recorrente quanto a estes pontos.

No que diz respeito ao crime de falsas declarações, de que a arguida M… C… R… V… está acusada, pretende o recorrente, José A…. F… imputar o crime, em comparticipação (co-autoria), ao arguido M… R… porquanto, segundo mesmo este estava acompanhado da arguida e confirmou a sua falsa qualidade de Advogada.

Todavia, também aqui não parece ter razão, pois a efectivação do crime radicou no acto de identificação daquela perante a autoridade policial, no momento em que a arguida M… C… V…, declarou tais factos relativos à sua identidade e profissão, sem que haja qualquer indício de que tenha havido aqui um prévio acordo de vontades na execução do crime, com vista à obtenção de um determinado resultado final.

Como recentemente defendemos no nosso Acórdão de 26.09.2018, publicado em www.dgsi.pt/trl:

“A noção de autoria, para além das modalidades de, imediata ou mediata, abrange também os casos de comparticipação com pluralidade de agentes. Neste caso, é essencial o acordo prévio para o facto e a participação directa, mediata ou imediata, na execução desse mesmo facto ou factos.
Tal acordo pode não ser expresso, bastando que seja tácito, todavia, neste caso, terá de ser concludente quanto à vontade de executar o facto e de traduzir uma contribuição objetiva conjunta para a realização da ação típica previamente acordada.
A co-autoria pressupõe um elemento subjectivo que impõe ao co-autor, que actue com a consciência que a sua acção concreta está a contribuir (nos termos acordados) para a realização da ação comum e um elemento objectivo, que constitui a realização conjunta do facto, ou seja, tomar parte directa na execução”.
Nenhum destes pressupostos está minimamente indiciado, pelo que, se conclui pela improcedência do recurso também neste ponto.

DECISÃO.

Nestes termos e pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes da 3ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa em negar provimento ao recurso interposto pelo assistente, José A… P… F…

Custas a cargo do recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 5 UC (cinco unidades de conta – artº 513º nº 1 do cód. proc. penal).

Lisboa 7 de Novembro de 2018

(A. Augusto Lourenço)
(João Lee Ferreira)

[1]- Cfr. Ac. STJ de 19/6/1996, BMJ 458, 98.
[2]- Cfr. Definição de funcionário no artº 386º do cód. penal.