Parecer N.º E-10/07
O OBJECTO DA CONSULTA
Uma Companhia de Seguros, operando em Portugal, solicitou à Ordem dos Advogados parecer sobre as duas seguintes questões, que formula nestes termos:
I – Um advogado pode intervir, na qualidade de advogado, num acto em que ele próprio é o beneficiário do mesmo? Ex.: exercer funções notariais num documento que lhe atribui poderes?
II – Uma procuração que concede ao advogado poderes especiais (de recebimento e quitação fora do âmbito judicial), tem de ter algum formalismo especial? Ex.: reconhecimento de assinatura?”
A CAUSA DA CONSULTA
Refere a companhia de seguros que “…tem vindo a ser confrontada com a apresentação por advogados de procurações forenses que incluem poderes para dar quitação e receber indemnizações, solicitando-lhe o pagamento das mesmas, fora do contexto forense, muitas vezes com pretensão de que o cheque seja emitido em seu nome e não no do cliente.”
Acrescenta que: “Pontualmente estas procurações trazem o reconhecimento da assinatura do outorgante, pelo próprio advogado a que a procuração dá poderes, o que também tem sido nosso entendimento ser inadmissível por se tratar de negócio consigo mesmo.”
E remata assim: “tendo em atenção que nos parece indevida tal pretensão com base numa procuração, que no nosso entendimento se destina apenas e tão só a situações judiciais/forenses e que não confere poderes especiais quer material, quer formalmente, vimos solicitar a vossa apreciação da situação enviando em anexo um exemplo das muitas procurações que nos têm sido apresentadas.”
A procuração que envia em anexo confere “…poderes forenses gerais e especiais para acordar, desistir e transigir, bem como para receber qualquer indemnização a que tenha direito emergente de acidente de viação ocorrido em …., em que faleceu F….., companheiro da outorgante e pai dos menores.”
O REGIME JURÍDICO DAS SITUAÇÕES EM APREÇO
As questões colocadas à nossa apreciação respeitam: a) – aos impedimentos dos advogados para intervirem em actos notariais e b) – ao formalismo das procurações passadas a advogados, com poderes especiais para receberem e dar quitação das indemnizações emergentes de acidente de viação devidas aos seus mandantes, fora do âmbito judicial.
O regime jurídico dos impedimentos está fixado nos arts. 5º e 6º do Código do Notariado (CNot, daqui por diante), por remissão da parte final do nº 1, do art. 38º do DL 76-A/2006, de 29/Março.
Por seu turno, o regime jurídico do formalismo das procurações com poderes especiais para receber e dar quitação das indemnizações emergentes de acidente de viação, fora do âmbito judicial, encontra-se fixado nos arts. 262º, nº2, 363, nº2, 371,nºs1, 3 e 4 e 375º,nº1, do CCivil.
O NOSSO PARECER
I – Quanto aos impedimentos do advogado em relação aos actos notariais que tem competência para praticar, dispõe o citado art. 38º, nº 1, do DL 76-A/2006, de 29/Março que: “…os advogados …podem fazer reconhecimentos simples e com menções especiais, presenciais e por semelhança, autenticar documentos particulares, certificar ou fazer e certificar, traduções de documentos nos termos previstos na lei notarial,…”.
Sublinhamos “nos termos previstos na lei notarial” para evidenciar que o regime jurídico dos actos notariais dos advogados está sujeito à disciplina da lei notarial, nomeadamente o Código do Notariado.
Este diploma fixa o regime dos impedimentos nos seus artigos 5º e 6º, regime este que se aplica aos advogados sempre que praticam actos notariais ao abrigo da competência que lhes foi conferida por aquele art. 38º.
E o nº 1 do art. 5º do CNot dispõe que :
“1- O notário não pode realizar actos em que sejam partes ou beneficiários, directos ou indirectos, quer ele próprio, quer o seu cônjuge ou qualquer parente ou afim na linha recta ou em 2º grau da linha colateral.”
Deste dispositivo legal resulta com clareza que o advogado não pode realizar acto notarial de que seja beneficiário, sendo, pois, negativa a resposta à primeira questão colocada.
Em caso semelhante e em sentido próximo do exposto, pronunciou-se o Ac.RÉvora, de 07-07-2005, em www.dgsi.pt , cujo sumário passamos a transcrever:
“1 – O advogado subscritor da petição inicial, mandatário do A. e representante dos seus interesses, não pode traduzir, ele próprio, documentos e a certificar a sua própria tradução, e destinados a fazer prova no processo que patrocina, por não estarem asseguradas as garantias mínimas de rigor, isenção e fidelidade.”
“2 – As limitações e incompatibilidades impostas aos notários, são aplicáveis, mutatis mutantis, à actividade de tradução e reconhecimento de documentos, exercida pelos Srºs Advogados, nos termos do disposto nos arts. 5º nº1 e 6º do DL nº 237/01.”
II – quanto à segunda questão, e antecipando a conclusão afigura-se-nos que a procuração que concede ao advogado poderes especiais para, fora do âmbito judicial, receber e dar quitação da indemnização emergente de acidente de viação devida ao seu mandante, não obedece a qualquer formalismo especial, devendo apenas observar a forma escrita. Mas o reconhecimento presencial da assinatura pode ser exigido pelo devedor da indemnização.
Na verdade, o art.262º, do CCivil, no que respeita à forma da procuração, dispõe que “2. Salvo disposição legal em contrário, a procuração revestirá a forma exigida para o negócio que o procurador deva realizar.”
Daqui resulta que, devendo a quitação ser escrita, a procuração, para ser válida, deve apenas ter forma escrita, uma vez que não há disposição legal em contrário, designadamente, não há qualquer disposição legal a exigir a intervenção notarial.
Mas, por outro lado, temos que a procuração em causa é um documento particular (art. 363º,nº 2, in fine, CCivil).
E é aqui que entra a questão da assinatura e do seu reconhecimento, que é a questão central colocada na consulta.
Nos termos do disposto no art.º 373, nº1, do CCivil, “1. Os documentos particulares devem ser assinados pelo seu autor, ou por outrem a seu rogo, se o rogante não souber ou não puder assinar”.
Em caso de assinatura a rogo, a assinatura deve ser presencial perante o notário e o rogo deve ser confirmado também perante o notário, como decorre do disposto no art. 373º, nºs 3 e 4 do CCivil e art. 154º. CNot.
Quando a procuração for assinada pelo seu autor e não já por outrem a seu rogo, a assinatura só se tem por verdadeira se estiver reconhecida presencialmente, nos termos das leis notariais – é o que dispõe o art. 375º, nº 1 do Ccivil.
Daqui decorre que o devedor da indemnização pode exigir que a assinatura seja reconhecida presencialmente, não sendo, porém essa a prática corrente.
Na prática exige-se uma cópia do bilhete de identidade ou de documento equivalente para conferência da assinatura.
Esse reconhecimento, já ficou dito, não poderá ser feito pelo advogado que recebe o mandato, pois que ele é parte no contrato de mandato, que a procuração integra, conferindo os poderes para a prática dos actos jurídicos (recebimento da prestação e quitação) por conta do mandante autor da procuração. E o art. 5º do CNot impede-o de realizar esse reconhecimento.
III – Quanto à questão do negócio consigo mesmo, cabe dizer que, se o fosse (mas não é, como veremos de seguida), o advogado não poderia intervir nessa procuração, mas por uma outra razão, que se extrai do nº 2, do art. 116º, do CNot, que dispõe que as procurações conferidas também no interesse do procurador devem ser lavradas por instrumento público, cujo original é arquivado no cartório notarial. E o advogado, embora lhe tenha sido delegada pelo Estado a mesma fé pública que delegou nos notários para a prática de determinados actos, não dispõe ainda de arquivo dos seus actos notariais, pelo que nunca poderia lavrar esse instrumento.
Mas, como se disse, não estamos perante um negócio consigo mesmo. A procuração é um acto unilateral, que confere ao advogado os poderes para praticar actos jurídicos por conta e em nome do mandante. Sendo um acto unilateral do mandante, a procuração não pode ser simultaneamente um negócio do advogado consigo mesmo. Até mesmo porque a procuração conferida ao advogado, no âmbito da sua actividade profissional é, por essência, revogável.
A actividade do advogado, no contrato de mandato, é exercida no interesse do mandante, os actos jurídicos que pratica, munido dos poderes que a procuração lhe confere, são-no por conta do mandante e em seu nome, os efeitos desses actos produzem-se exclusivamente na esfera jurídica do mandante (art. 285º, CCivil) e não na do advogado, pelo que não são negócio consigo próprio.
O advogado procurador tem apenas direito à retribuição correspondente ao exercício da sua actividade profissional exercida exclusivamente no interesse do mandante. A não se entender assim, qualquer trabalhador, qualquer prestador de serviços, enquanto estivesse a exercer a sua actividade profissional estaria a efectuar um negócio consigo mesmo só porque estaria a trabalhar para auferir a correspondente retribuição.
EM CONCLUSÃO
Face ao exposto, propomos que seja aprovado o seguinte parecer:
1 – O advogado não pode realizar acto notarial de que seja beneficiário, designadamente, não pode efectuar reconhecimentos de assinaturas em procuração passada a seu favor.
2 – A procuração que concede ao advogado poderes especiais para, fora do âmbito judicial, receber e dar quitação da indemnização emergente de acidente de viação devida ao seu mandante, não obedece a qualquer formalismo especial, devendo apenas observar a forma escrita. Mas o devedor da indemnização pode exigir o reconhecimento presencial da assinatura do autor da procuração.
Tavira, 20 de Outubro de 2007
Carlos Santos
Relator: Carlos Santos
https://www.oa.pt/cd/Conteudos/Pareceres/detalhe_parecer.aspx?sidc=31634&idc=501&idsc=158&ida=60686