1. As Senhoras Advogadas Drª. … , Drª. … e Drª. … vêm participar que a Secção Central do Tribunal Judicial da Comarca de … se tem recusado a aceitar diversos articulados, incluindo petições iniciais, pelo facto de não ser exibido o bilhete de identidade dos mandantes para reconhecimento da respectiva assinatura nas procurações forenses.
Manifestam-se contra a legalidade de tal procedimento e solicitam o esclarecimento da questão de saber se é ou não obrigatória a exigida exibição, face ao estatuído no Decreto-Lei nº. 267/92 de 28 de Novembro.
2. A obrigatoriedade do reconhecimento da assinatura do mandante nas procurações através das quais se confere o mandato judicial encontra-se estabelecida no artº.35º al.a) do Código de Processo Civil e arts.127º e 129º do Código do Notariado.
Desde há alguns anos, porém, que o legislador vem anunciando insistentemente uma tendência desburocratizante, percorrendo com firmeza digna de registo um caminho no sentido da progressiva abolição de formalidades com pouca ou nenhuma justificação numa sociedade moderna inserida na nova ordem jurídica comunitária.
Tal atitude tem-se sentido em diversas áreas, e particularmente no que respeita à redução da exigência de intervenção de notário nos actos dos cidadãos, mormente desde 1987, no que toca à obrigatoriedade do reconhecimento da assinatura em certos documentos de grande simplicidade.
Nesse sentido, surgiu o Decreto-Lei nº. 21/87 de 12 de Janeiro, que veio equiparar, em termos de valor legal, ao reconhecimento notarial por semelhança da assinatura, a simples exibição, a qualquer entidade, do bilhete de identidade do signatário. Aparentemente, é por aplicação deste diploma legal que a Secção Central do Tribunal de … tem vindo a exigir a exibição do bilhete de identidade dos mandantes em procurações forenses.
Na esteira deste diploma, foram publicados os Decretos-Lei nº. 55/88 de 26 de Fevereiro (dispensa o reconhecimento notarial da assinatura dos delegados de saúde), nº. 171/89 de 26 de Maio (equipara ao reconhecimento notarial, no registo de inscrição de acções, a abonação bancária da assinatura), nº. 60/90 de 14 de Fevereiro (reconhecimento das assinaturas em pedidos de registo predial), e ainda o nº. 383/90 de 10 de Dezembro (abole o reconhecimento notarial da assinatura nos atestados médicos).
Relativamente aos advogados, começou-se por abolir a obrigatoriedade de reconhecimento notarial da assinatura nos substabelecimentos, através do Decreto-Lei nº. 342/91 de 14 de Setembro (depois tornado aplicável aos solicitadores pelo Decreto-Lei nº. 47/92 de 4 de Abril).
3. O Decreto-Lei nº. 267/92 de 28 de Novembro veio determinar, no seu artigo único, que as procurações passadas a advogados para a prática de actos que envolvam o exercício do patrocínio judiciário, ainda que com poderes especiais, não carecem de intervenção notarial, devendo o mandatário certificar-se da existência, por parte do mandante, dos poderes para o acto.
Abolida assim a exigência de reconhecimento notarial da assinatura, quer por semelhança quer presencial, do mandante, será que se manteria a exigência de exibição do bilhete de identidade daquele? Cremos que não. E cremos mesmo que tal tese não tem a menor consistência jurídica, para não dizer que não é sequer defensável.
A possibilidade de exibição do bilhete de identidade para reconhecimento da assinatura, como alternativa ao reconhecimento notarial por semelhança, não foi criada como mais uma formalidade, mas antes como um meio de evitar uma formalidade e de tornar assim mais simples para o cidadão o processo de verificação da sua assinatura, evitando-lhe o encargo de ter de se deslocar ao notário para esse efeito. Visou-se simplificar a vida ao cidadão, e não criar-lhe mais um entrave burocrático ou um diferente entrave burocrático.
De facto, a finalidade da norma em referência foi, sem margem para dúvidas, conseguir que o cidadão já não precise de ir ao notário, bastando-lhe exibir o seu bilhete de identidade. Mas obviamente que tal exibição era – e é – uma alternativa simplificada à obrigatoriedade do reconhecimento notarial. O que veio estabelecer-se, nesse diploma, foi que não é lícito a quaisquer “entidades” exigir o reconhecimento notarial, nos casos em que este é obrigatório evidentemente, quando o cidadão lhe exiba o bilhete de identidade, e não que essas “entidades” pudessem passar a exigir a exibição do bilhete em todo e qualquer documento, independentemente da obrigatoriedade de intervenção notarial nesse documento.
A diferença é bem visível! O que a lei veio determinar foi que nos documentos – e só neles – em que fôr obrigatório o reconhecimento notarial, as entidades a quem o documento fôr apresentado, são obrigadas, sob pena de coima, a aceitar a simples exibição do bilhete de identidade do signatário. É, pois, totalmente abusivo e contrário ao espírito e à letra da lei pretender que passou a ser permitido àquelas “entidades” exigir a referida exibição do bilhete de identidade para verificação de assinaturas em documentos em que não seja obrigatório o respectivo reconhecimento notarial. É neste equívoco manifesto que se baseia a atitude da Secção Central do tribunal Judicial da Comarca de ….
É que, na verdade, se deixou – como efectivamente aconteceu – de ser obrigatório o reconhecimento notarial da assinatura nas procurações forense passadas a advogado, não faz qualquer sentido continuar a fazer uma exigência de uma formalidade que a lei criou especificamente para documentos em que tal reconhecimento fosse, ou seja, obrigatório. Trata-se, no mínimo, de um contra-senso.
4.Mas se, porventura, tal argumentação lógica não bastasse, não é menos certo que a interpretação contrária à que acima defendemos faleceria igualmente por totalmente oposta ao espírito do diploma interpretando, bem claramente expresso no seu preâmbulo.
De facto, nele se invoca a fé de que gozam os actos praticados por advogados, e se afirma que os advogados, até por essa fé pública de que gozam, possam, eles próprios, atestar a veracidade do mandato e a extensão dos poderes recebidos. Não podem pois restar dúvidas que foi intenção do legislador dar ao advogado a possibilidade de através da simples posse do documento atestar, pela fé de que goza, que a assinatura nela aposta é verdadeira.
Ainda no preâmbulo, mais adiante, se esclarece que a medida surge integrada na “revisão da problemática do reconhecimento de assinaturas em documentos destinados a uso oficial”, referindo- -se, com toda a clareza, que é ao advogado que compete certificar-se, a si próprio, dos poderes do mandante. Basta portanto que ele, advogado, se certifique (e tem a obrigação de o fazer) dos poderes e, necessariamente, da identidade do mandante, para que o documento seja legalmente válido, sendo portanto lícito concluir que não é exigível qualquer outra verificação da assinatura por qualquer outra pessoa, designadamente pelos Senhores funcionários do Tribunal.
5.Se ainda não fosse suficiente a argumentação expendida, teríamos, por fim, o argumento do absurdo! O absurdo que seria adoptar-se a interpretação contrária à aqui defendida, face ao teor do texto legal.
É que deve notar-se que a medida de abolição do reconhecimento notarial veio abranger mesmo os reconhecimentos em procurações com poderes especiais, os quais, como se sabe careciam de reconhecimento notarial da letra e assinatura, presencial.
Ora, tais reconhecimentos não foram, nem estão, abrangidos pela medida de simplificação consagrada no Decreto-Lei nº. 21/87 de 12 de Janeiro, não sendo portanto substituíveis pela simples exibição do bilhete de identidade do signatário.
Ou seja, a aceitar-se como boa a tese correspondente à atitude da Secção Central do Tribunal de …, cair-se-ía na situação perfeitamente incongruente que seria poder exigir-se a exibição do bilhete de identidade do mandante nas procurações simples com poderes forenses gerais e já não poder fazer-se idêntica exigência nas procurações com poderes especiais…
Ficaria assim um acto mais simples – a procuração com poderes gerais – sujeito a maior formalidade do que outro – a procuração com poderes especiais – de natureza mais complexa… Para este último caso, por um lado não seria necessário o reconhecimento notarial, e por outro não seria possível a exigência do bilhete de identidade do mandante!
Para além do absurdo evidente que daí resultaria, não é obviamente possível defender que o legislador tivesse querido rodear a procuração forense geral, de maior formalidade do que a com poderes especiais. A menos que a Secção Central do Tribunal Judicial de … entenda que, quando a procuração forense fôr com poderes especiais, além do bilhete de identidade, o advogado deverá levar consigo o cliente em pessoa, para assinar a procuração na presença de tão zelosos funcionários…
6. Conclusões
1º.- O Decreto-Lei nº. 21/87 de 12 de Janeiro veio determinar que a exibição do bilhete de identidade do signatário de qualquer documento tem o mesmo valor legal do reconhecimento notarial por semelhança;
2º. – O sentido dessa norma foi o de simplificar o reconhecimento de assinaturas, permitindo que, nos documentos em que seja obrigatório o reconhecimento notarial, este possa ser substituído pela simples exibição do bilhete de identidade;
3º. – O Decreto-Lei 267/92 de 28 de Novembro veio, por sua vez, abolir a obrigatoriedade de reconhecimento notarial de assinaturas nas procurações forenses passadas a advogados, com poderes gerais ou especiais;
4º. – Não sendo obrigatório o reconhecimento notarial nas procurações forenses, não pode ser exigida por qualquer entidade outra forma de verificação da assinatura do mandante, designadamente por exibição do bilhete de identidade;
5º. – Apenas ao advogado mandatário compete certificar-se, a si próprio, da identidade e poderes do mandante, não sendo lícito a terceiros exigir-lhe qualquer documento comprovativo da autoria da assinatura ou dos poderes do signatário.
Este é, salvo melhor opinião, o nosso parecer.
Lisboa, 16 de Março de 1993
https://www.oa.pt/ci/Conteudos/Pareceres/detalhe_parecer.aspx?sidc=67376&idc=31890&idsc=158&ida=40094