Portugal: Partilha | Divórcio | Bens no exterior | Imóvel

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Sumário

I – A partilha de bens imóveis situados em território português não é da competência exclusiva dos tribunais portugueses, podendo ser feita em acção de divórcio perante tribunal estrangeiro.

II – Na acção de revisão e confirmação de sentença estrangeira, o juízo de compatibilidade com a ordem pública internacional do Estado Português é aferido pelo resultado da aplicação da lei estrangeira ao caso concreto.

III – A partilha de bens comuns do casal, feita em acção de divórcio, proferida por tribunal estrangeiro, na qual se atribui a um dos cônjuges, sem qualquer contrapartida, um bem imóvel comum situado em Portugal, viola a ordem pública internacional do Estado Português.

IV – Porque, segundo o direito substantivo português, o resultado da decisão, no que concerne à partilha dos bens do casal, seria inquestionavelmente mais favorável ao requerido [visto que, por força do princípio da imutabilidade do regime de bens, a partilha sempre teria que respeitar a regra da metade, logo o imóvel, sendo bem comum, jamais poderia ser atribuído em propriedade exclusiva à requerente sem qualquer contrapartida económica (tornas)], existe obstáculo ao reconhecimento com fundamento no privilégio da nacionalidade.

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

I – RELATÓRIO

1.1. – A requerente – A… – instaurou acção de revisão e confirmação de sentença estrangeira, com forma de processo especial, contra o requerido – B… , residente em X……, Genebra, Suiça e, quando em Portugal, em S. Pedro do Sul.
Pediu a confirmação da sentença proferida em 10 de Março de 2005 pelo Tribunal de 1ª Instância da República e Cantão de Genebra, Suíça que decidiu:
Decretar o divórcio entre requerente e requerido;
Atribuir à requerente a guarda e autoridade parental das filhas C… , nascida a 20 de Agosto de 1991, e D… , nascida a 20 de Dezembro de 1997;
Condenar o requerido a pagar à requerente, a título de alimentos provisórios de C… e D….;
Ordenar a liquidação do regime matrimonial da requerente e requerida;
Condenar o requerido a ceder à requerente a totalidade dos seus direitos num terreno designado “ Eira”, com superfície de 1.480 m2, situado em São Pedro do Sul ( Portugal ), parcela nº270 da paróquia de Santa Cruz da Trapa, adquirido pelos cônjuges a 28 de Setembro de 2001.

1.2. – Citado editalmente o requerido, não contestou.

O Ministério Público contestou ( fls.141) , defendendo, em resumo:
A incompetência internacional dos tribunais portugueses para confirmar a parte decisória da sentença revidenda, por incidir sobre bens imóveis sitos em Portugal ( arts.65-A a) e 1096 c) do CPC)

O processo de divórcio em que o requerido foi revel, nos segmentos decisórios ( nº10 e 11 ) não foi tirada em processo justo e equitativo, pois o requerido não recebeu quaisquer bens ou tornas.

1.3. – Entretanto, o requerido foi citado pessoalmente ( fls.165 ), declarando-se cessada a representação do Ministério Público ( fls.227 ).

1.4. – O Ministério Público alegou ( fls.238 ), dizendo que a sentença revidenda não podia ordenar a transmissão da propriedade do bem imóvel, sito em Portugal, para a esfera jurídica da requerente, nem pode o requerido ser objecto de apreensões e multa, concluindo pela improcedência da acção no segmento referido.
A requerente alegou ( fls.239 ) preconizando a procedência da acção.

II – FUNDAMENTAÇÃO

2.1. – Os factos provados:

1) – A requerente e o requerido contraíram, entre si, casamento no dia 17 de Setembro de 1988, sem convenção antenupcial.
2) – Deste casamento nasceram as filhas C… , em 20 de Agosto de 1991, e D…., em 20 de Dezembro de 1997.
5) – Por escritura de 28 de Setembro de 2001, no Cartório Noatral de S. Pedro do Sul, I…., por si e na qualidade de procurador de E… e F… , e G… , declararam vender a A…, representada pelo seu procurador H…. , pelo preço de três mil contos o prédio rústico, denominado Eira, sito na freguesia de Santa Cruz da Trapa, inscrito na matriz sob o artigo 1344 ( fls.16 )
3) – O Tribunal de 1ª Instância da República e Cantão de Genebra, Suíça, por sentença de 10 de Março de 2005, proferida à revelia do requerido, decidiu:
1. Decretar o divórcio entre requerente e requerido;
2. Atribuir à requerente a guarda e autoridade parental das filhas C…., nascida a 20 de Agosto de 1991, e D…., nascida a 20 de Dezembro de 1997;
3. Reservar ao requerido um direito de visita que se exercerá, excepto acordo em contrário das partes, um fim de semana sobre dois e durante metade das férias escolares;
4. Condenar o requerido a pagar à requerente, a título de alimentos provisórios de C…. e D…., por mês e antecipadamente, por cada filha ( não incluídas as prestações familiares ou de estudos): 750 CHF até aos doze anos de idade e 900 CHF dos doze anos até à maioridade, ou até aos 25 anos, no caso de estudos sérios e contínuos;
5. Estas contribuições serão actualizadas no dia 1 de Janeiro de cada ano, a primeira vez no dia 1 de Janeiro de 2006, e indexadas ao índice de Genebra relativo aos preços de consumo, o índice base é o que foi referido na sentença.
Declarar que no caso de os rendimentos do devedor não sigam integralmente a evolução do índice, a adaptação das contribuições acompanharão a evolução proporcional aos seus rendimentos;
6. Atribuir à requerente o usufruto exclusivo do domicílio conjugal, sito em Y…………….Genebra, com os direitos e obrigações que resultam do contrato de arrendamento relativo à habitação.
7. Atestar que a requerente renuncia ao direito de reclamar para si uma pensão de alimentos pós-divórcio;
8. Declarar que não há lugar a partilhar os créditos de livre passagem constituídos durante o casamento de ambos;
9. Ordenar a liquidação do regime matrimonial da requerente e requerida;

10. Condenar o requerido a ceder à requerente a totalidade dos seus direitos num terreno designado “ Eira”, com superfície de 1.480 m2, situado em São Pedro do Sul ( Portugal ), parcela nº270 da paróquia de Santa Cruz da Trapa, adquirido pelos cônjuges a 28 de Setembro de 2001.

Atribuir ao requerente o prazo de seis meses, após ter sido decretado o divórcio, para iniciar as diligências necessárias em Portugal para a cedência dos seus direitos à requerente;

Informá-lo que se não proceder a estas diligências, será passível de apreensões e multas, de acordo com o art.292 do Código Civil;
11. Condenar o requerido a pagar à requerente a soma de 21.607 CHF a título de liquidação do regime matrimonial;
12. Condenar o requerido ao pagamento das despesas, as quais incluem uma indemnização de 2.000 CHF a título de participação nos honorários ao advogado da requerente;
13. Indeferir as partes de qualquer outra conclusão.
4) – Esta sentença transitou em julgado em 3 de Maio de 2005.

5) – Por escritura de 28 de Setembro de 2001, no Cartório Noatral de S. Pedro do Sul, I…., por si e na qualidade de procurador de E….e F…., e G…., declararam vender a A…, representada pelo seu procurador H…., pelo preço de três mil contos o prédio rústico, denominado Eira, sito na freguesia de Santa Cruz da Trapa, inscrito na matriz sob o artigo 1344 ( fls.16 )

2.2. – O Direito:

2.2.1. – A acção de revisão, assumindo a natureza de simples apreciação, a que corresponde a forma de processo especial, regulado nos arts.1094 a 1102 do CPC, destina-se a verificar se a sentença estrangeira está em condições de produzir efeitos como acto jurisdicional na ordem jurídica portuguesa.
O sistema português de revisão de sentença estrangeira, porque fundado no princípio da estabilidade das relações jurídicas internacionais, é, em regra, meramente formal, não visando um reexame do mérito da causa, mas tão só à verificação do preenchimento dos requisitos previstos nas diversas alíneas do art.1096 do CPC.

2.2.2. – Os requisitos da confirmação:

O exame da certidão da sentença revidenda não deixa dúvidas sobre a autenticidade do documento do qual ela consta, nem sobre a inteligibilidade da decisão, havendo transitado em julgado.
A decisão sobre o divórcio e regulação do exercício do poder paternal não foi posta em causa, sendo que quanto ao divórcio a Convenção de Haia de 1 de Junho de 1970, “Sobre Reconhecimento de Divórcio e Separação de Pessoas”, vigente em Portugal desde 9 de Junho de 1985 ( DR 1ª Série de 19/7/1985 ), e também subscrita pelo Estado Suíço, impede qualquer exame referente ao reconhecimento de mérito.
Na situação concreta, face à oposição do Ministério Público, problematiza-se apenas se existe fundamento legal para a revisão e confirmação da sentença revidenda relativamente aos segmentos decisórios dos pontos nº10 e 11, por não preencher os requisitos do art.1096 alíneas c) e f) do CPC.
Com efeito, considera o Ministério Público que situando-se o bem imóvel em Portugal, a competência é exclusiva dos tribunais portugueses ( art.65-A do CPC) e o resultado da liquidação do regime viola a ordem pública internacional do Estado Português.


2.2.3. – A competência exclusiva:

Sobre a competência internacional indirecta, a alínea c) do art.1096 do CPC, na redacção do DL nº329-A/95 de 12/12, consagrou a chamada “doutrina da unilateralidade atenuada”, em que o tribunal da revisão tem de verificar, em face das regras de conflito de jurisdições da lei portuguesa, se a acção devia ter sido proposta em Portugal, ou seja, se para ela eram competentes os tribunais portugueses e se esta competência era exclusiva ( cf. FERRER CORREIA, “ O Reconhecimento das sentenças estrangeiras no Direito Brasileiro e no Direito Português”, RLJ ano 116, pág.165, MOURA RAMOS, “ A Reforma do Direito Processual Civil Internacional “, RLJ ano 130, pág.235, LIMA PINHEIRO, Direito Internacional Privado, vol.III, pág.351).
O art.65-A a) do CPC atribui competência exclusiva aos tribunais portugueses para “ as acções relativas a direitos reais ou pessoais de gozo sobre bens imóveis sitos em território português”.
A razão de ser desta norma sobre reserva de jurisdição para este tipo de acções radica na circunstância de o tribunal da situação do bem imóvel estar melhor apetrechado, face à proximidade, para conhecer os elementos de facto, as regras e usos do Estado da localização do bem, e ainda porque normalmente estas acções reclamam averiguações, inspecções ou perícias que terão de ser aí realizadas.
Por isso, não é suficiente para determinar a competência exclusiva dos tribunais portugueses que a acção se prenda indirecta ou acessoriamente com um direito real sobre imóvel, tornando-se indispensável que este consubstancie o fundamento nuclear da causa de pedir, com vista a assegurar a titularidade do sujeito respectivo.
Discute-se se a partilha de bens imóveis, situados em Portugal, decidida em sentenças de divórcio proferidas por tribunais estrangeiros está ou não sujeita à reserva de jurisdição dos tribunais portugueses.
Tem-se entendido, de forma prevalecente, inexistir reserva de jurisdição, na medida em que a acção de divórcio não pode ser qualificada, para o efeito, como acção real, ainda que nela se proceda à partilha de bens situados em território português. É que o conceito de “ acções relativas a direitos reais ou pessoais de gozo” não envolve toda e qualquer acção relativa a direitos sobre imóveis, como resulta do disposto no art.73 nº1 do CPC, que ao referir-se, no âmbito da atribuição de competência territorial, às “ acções relativas a direitos reais sobre bens imóveis sitos em território português”, não abrange o processo de inventário, cuja competência é regulada no art.77 do CPC.
Neste contexto, a partilha de bens imóveis situados em território português, feita em acção de divórcio perante tribunal estrangeiro não é da competência exclusiva dos tribunais portugueses ( cf., por ex., Ac do STJ de 13/1/2005, de 21/9/2006, de 3/7/2008, Ac RL de 8/3/2007, de 24/5/2007, disponíveis em www dgsi.pt; em sentido contrário, Ac do STJ de 1/3/2001, C.J. ano IX, tomo I, pág.133).

2.2.4. – A violação da ordem pública internacional do Estado Português:

Para o Ministério Público, a sentença revidenda, ao transferir forçadamente o bem imóvel para a requerente e ao impor ao requerido o pagamento da quantia de 21.607 CHF, em sede da partilha dos bens comuns, conduz a um resultado incompatível com os princípios da ordem pública internacional, já que fere a igualação na partilha.
A lei ( arts.22 do CC e 1096 f) do CPC) não define o conceito de “ordem pública internacional“, tratando-se de um conceito indeterminado, carecido de preenchimento valorativo na análise casuística.
O que releva, para o efeito, não são os princípios consagrados na lei estrangeira que servem de base à decisão, mas o resultado da aplicação da lei estrangeira ao caso concreto, ou seja, a reserva de ordem pública internacional visa impedir que a aplicação de uma norma estrangeira, pela via indirecta da execução de sentença estrangeira, implique, na situação concreta, um resultado intolerável.
Por conseguinte, o juízo de compatibilidade com a ordem pública internacional do Estado Português terá que ser necessariamente aferido, não pelo conteúdo da decisão e o direito nela aplicado, mas pelo resultado do reconhecimento, o que implica um “ exame global”.
Não basta, por isso, que a solução dada ao caso pelo direito estrangeiro seja divergente da do direito interno português, exigindo-se que o resultado seja “manifestamente incompatível”com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português ( cf. LIMA PINHEIRO, Direito Internacional Privado, vol.I, pág. 584 e segs., vol.III, pág.368 e segs), MARQUES DOS SANTOS, Aspectos do novo Código de Processo Civil, “Revisão e confirmação de sentenças estrangeiras”, pág. 140 ).
Na acção de divórcio, instaurada em 2/11/2004, relativamente à liquidação do regime matrimonial, A… pediu a condenação de B… a ceder-lhe a totalidade dos seus direitos sobre um terreno situado em S. Pedro do Sul e reclamou a quantia de € 21.607 CHF relativos à liquidação do regime matrimonial ( cf. ponto 10, da rubrica “ Em matéria de facto”).
Consignou-se na sentença revidenda que este é o bem principal a partilhar, adquirido pelos cônjuges em 28 de Setembro de 2001, pago com as poupanças do casal, e que a requerente “reivindica a parte da propriedade do requerido neste terreno, explicando que este se situa ao lado da propriedade dos seus pais” ( ponto 15).
Mencionou-se que a requerente solicitou que o montante de 42.702 Euros, saldo da conta bancária no Banco Atlântico, em Portugal, a 5 de Abril de 2002, seja reintegrado no cálculo dos bens do casal, num total de 66.615 CHF, e cuja metade lhe pertence.
Consignou-se também que, por não apresentarem nenhum contrato de casamento, nem declararam por escrito se desejavam continuar pelo anterior regime de comunhão de bens, os cônjuges foram submetidos ao regime legal da participação de adquiridos ( “ régime légal de la participation aux acquêts” ) ( cf. alínea K), nos termos do arts.181 e segs. do Código Civil Suíço.
No entanto, o tribunal deferiu a pretensão da requerente relativamente à liquidação, dizendo:
( “ (…) é conveniente fazer valer as conclusões relativamente à liquidação do regime matrimonial apresentadas pela requerente, na medida em que estas não são contraditadas pelos factos declarados e documentos apresentados ( art.78 alínea 1, 79 alínea 1, letra b da LPC “)).
Parece, assim, depreender-se que o tribunal aplicou a norma do art.205 do Código Civil Suíço, que, no caso de o imóvel ser propriedade comum, confere a um dos cônjuges a possibilidade de requerer a atribuição dessa propriedade por inteiro, desde que justifique um interesse predominante, face ao desinteresse do outro cônjuge ( “ Lorsqu’un bien est en copropriété, un époux peut demander, en sus des autres mesures prévues par loi, que ce bien lui soit attribué entièrement s’il justifie d’un intérêt prépondérant, à charge de désintéresser son conjoint “).
Segundo o direito Suíço, não havendo acordo entre os comproprietários sobre o modo de fazer a divisão, o juiz para além das situações previstas no art.605 al.2 CC, pode atribuir o bem inteiramente ao cônjuge que justificar um interesse preponderante, à custa do desinteresse do outro cônjuge ( art.205 al.2 CC Suiço ).
A jurisprudência helvética entende que um tal interesse preponderante pode revestir diversas formas e que a norma do art.205 do CC inscreve-se no quadro do dever de assistência mútua dos cônjuges segundo o art.159 CC, e visa a protecção do cônjuge. E só no caso de não se demonstrar o interesse preponderante é que a partilha será feita pela regra geral do art.651 al.2 do CC Suíço cf. (HAUSHEER/REUSSER/GEISER, Berner Kommentar, ad art.205 ).
A requerente e requerido, ambos de nacionalidade portuguesa, casaram em17 de Setembro de 1988, sem convenção antenupcial, ou seja, no regime supletivo da comunhão de bens adquiridos, que se traduz na participação de ambos os cônjuges, meio por meio, em todos os bens adquiridos a título oneroso na constância do casamento, que não sejam exceptuados por lei ( arts.1717, 1724, 1725, 1730 do CC ).

O art.1714 nº1 do CC consagra o princípio da imutabilidade do regime de bens, o que implica a proibição da modificação concreta da situação dos bens dos cônjuges, e deve entender-se em sentido amplo, por ser aplicável não só ao regime convencionado, mas também ao regime supletivo ( cf. PEREIRA COELHO/GUILHERME DE OLIVEIRA, Curso de Direito da Família, vol.I, 2ª ed., pág.488).

Tratando-se de uma norma imperativa, verifica-se, desde logo, que a sentença revidenda viola a ordem pública interna nacional, já que por força da imutabilidade, não podem bens comuns ser atribuídos em propriedade exclusiva a qualquer deles.

Contudo, deve questionar-se se também afronta a ordem pública internacional.

Para o Cons. QUIRINO SOARES a norma do art.1714 do CC é “porta-voz de um princípio de ordem pública internacional do Estado português” ( Lex Familiae, ano 3, nº5, pág.101). Diversamente, P.LIMA/A.VARELA ( Código Civil Anotado, vol.I, 3ª ed., pág.89), doutrinam que “ o princípio da imutabilidade das convenções antenupciais, fixado como regra no direito português, não é, pois, um princípio de ordem pública internacional “, face às regras dos arts.52 e 54 do CC, doutrina acolhida no Ac RL de 23/10/2008, proc. nº637/2008 ( em www dgsi.pt) no sentido de que que a imutabilidade do regime de bens do casamento estabelecida no art.1714 do CC não é princípio de ordem pública internacional.

A sentença revidenda afirma a contitularidade do bem imóvel por parte de ambos os cônjuges. Na verdade, sendo eles casados em regime de bens adquiridos e uma vez que o imóvel foi comprado na constância do matrimónio, trata-se de um bem comum, faz parte do património comum do casal.
Pertencendo o imóvel a ambos os cônjuges, a deslocação compulsiva da transferência do direito do requerido para a requerente, sem qualquer contrapartida, imposta coactivamente na sentença revidenda, viola a ordem pública internacional do Estado Português.

Isto porque, a nosso ver, se reconduz à violação do direito de propriedade, constitucionalmente garantido ( art.62 da CRP) e a uma espécie de expropriação particular sem qualquer indemnização, o que, ressalvando o devido respeito, evidencia um enriquecimento injustificado da requerente à custa do requerido.

O direito de propriedade, constitucionalmente garantido, abrange, além do mais, o direito de não ser privado dela, impondo a lei a indemnização para a hipótese de expropriação.
Neste contexto, o reconhecimento da sentença revidenda, nos segmentos decisórios impugnados, relativamente à partilha dos bens do casal, conduziria a um resultado não permitido pelos princípios fundamentais do Estado de Direito.

É que mesmo a conceber-se a atribuição exclusiva do bem imóvel comum à requerente como sanção pelo desinteresse do requerido em relação ao casamento, dando causa à situação de ruptura matrimonial e comprometendo a possibilidade de vida em comum, há que convir que tal sanção, é notoriamente desproporcionada.
Neste contexto, afigura-se que o resultado da aplicação da lei estrangeira ao caso concreto, viola a ordem pública internacional do Estado Português.

2.2.5. – A impugnação pelo privilégio da nacionalidade:

Contudo, mesmo que assim se não entenda, designadamente, por a violação não se revelar ostensiva, sempre haverá obstáculo ao reconhecimento, com base no fundamento adicional de impugnação, previsto no art.1100 nº2 do CPC, que muito embora não tenha sido expressamente mencionado pelo Ministério Público, está claramente implícito, como ressalta do alegado na contestação.

Diz o art.1100 nº2 do CPC – “ Se a sentença tiver sido proferida contra pessoa singular ou colectiva de nacionalidade portuguesa, em que o resultado da acção lhe teria sido mais favorável se o tribunal estrangeiro tivesse aplicado o direito material português, quando por este devesse ser resolvida a questão segundo as normas de conflitos da lei portuguesa”.

O chamado “privilégio da nacionalidade” deixou de constituir um dos requisitos de confirmação para figurar agora como obstáculo ao reconhecimento e depende de invocação da parte interessada.

Com esta alteração, introduzida com a reforma de 1995, pretende-se “não sujeitar a parte de nacionalidade portuguesa, que viu ser julgado contra si o pleito, a uma situação diferente da que resultaria da aplicação do direito material português (direito que o juiz a quo não aplicou, apesar de ser ele o competente em face das regras de conflitos da lei portuguesa)” (FERRER CORREIA / FERREIRA PINTO, “Breve Apreciação das Disposições do Anteprojecto do Código de Processo Civil”, Revista de Direito Económico, XIII, 1987, pág. 55).
Nesta situação, a revisão deixa de ser meramente formal para se converter em revisão de mérito, por implicar a qualificação jurídica dos factos (definitivamente estabelecidos) segundo a ordem jurídica portuguesa, ou seja, se a qualificação feita pelo tribunal estrangeiro é aceitável perante o ordenamento jurídico português.
Sendo ambos os cônjuges de nacionalidade portuguesa, as relações entre eles são reguladas pela lei nacional comum ( art.52 nº1 do CC ). Por outro lado, a substância e efeitos do regime legal de bens são definidos pela lei nacional dos nubentes ao tempo do casamento ( art.53 nº1 do CC ).
Posto isto, facilmente se constata que, segundo o direito material português, o resultado da decisão, no que concerne à partilha dos bens do casal, seria inquestionavelmente mais favorável ao requerido.

É que, por força do princípio da imutabilidade do regime de bens, a partilha sempre teria que respeitar a regra da metade, logo o imóvel sito em S. Pedro do Sul, sendo bem comum, jamais poderia ser atribuído em propriedade exclusiva à requerente, sem qualquer contrapartida económica (tornas), tanto mais que o nosso ordenamento jurídico não contém norma similar à do art.205 do Código Civil Suíço.

É certo que, com vista à tutela da outra parte no litígio, alguma doutrina faz uma interpretação restritiva do art.1100 nº2 do CPC, não podendo ser accionado quando “ a situação resultante da decisão estrangeira, ainda que com desrespeito do disposto pelas nossas regras de conflitos, deva ser reconhecida, face ao princípio consagrado no artigo 31º nº2 do nosso Código Civil, pelo nosso sistema conflitual “ (cf. MOURA RAMOS, RLJ ano 130, pág.237 ).

Por seu turno, o art.31 nº2 do CC preceitua que, apesar de a lei pessoal dos indivíduos ser a da respectiva nacionalidade, serão reconhecidos em Portugal os negócio jurídicos celebrados no país da residência habitual das partes, em conformidade com a lei desse país, desde que ela se considere competente.

Tem-se entendido que a ratio legis é a tutela da confiança dos interessados na validade da situação jurídica que criaram à sombra da lei do país em que têm residência habitual, logo deve aplicar-se analogicamente, até porque o legislador também elegeu, para lá da nacionalidade, a residência habitual como elemento de conexão ( cf. FERRER CORREIA, RLJ ano 116, pág.163 e 164 ).

Contudo, a imutabilidade o regime de bens e a natureza comum dos bens a partilhar resulta directamente da lei nacional, visto estar previamente colimada com o casamento, logo não se pode afirmar que tenha sido criada à sombra da lei estrangeira, sendo que o imóvel foi comprado na constância do matrimónio e situa-se em Portugal, o que significa uma intensa ligação com o Estado Português, a justificar o privilégio da nacionalidade.
Em resumo, procede parcialmente a acção, confirmando-se a sentença proferida em 10 de Março de 2005 pelo Tribunal de 1ª Instância da República e Cantão de Genebra, Suíça, excepto no tocante aos segmentos decisórios da partilha, por serem dissociáveis, havendo reconhecimento parcial da sentença revidenda.

2.2.6. – Síntese conclusiva:

1. A partilha de bens imóveis situados em território português, feita em acção de divórcio perante tribunal estrangeiro, não é da competência exclusiva dos tribunais portugueses.
2. Na acção de revisão e confirmação de sentença estrangeira, o juízo de compatibilidade com a ordem pública internacional do Estado Português é aferido pelo resultado da aplicação da lei estrangeira ao caso concreto.
3. A partilha feita em acção de divórcio, proferida por tribunal estrangeiro, na qual se atribui a um dos cônjuges, sem qualquer contrapartida, um bem imóvel, situado em Portugal, comum do casal, viola a ordem pública internacional do Estado Português.
4. Porque segundo o direito material português, o resultado da decisão, no que concerne à partilha dos bens do casal, seria inquestionavelmente mais favorável ao requerido, visto que por força do princípio da imutabilidade do regime de bens, a partilha sempre teria que respeitar a regra da metade, logo o imóvel, sendo bem comum, jamais poderia ser atribuído em propriedade exclusiva à requerente, sem qualquer contrapartida económica (tornas), existe obstáculo ao reconhecimento com fundamento no privilégio da nacionalidade.

III – DECISÃO

Pelo exposto, na parcial procedência da acção, decidem:

1) Confirmar a sentença proferida em 10 de Março de 2005 pelo Tribunal de 1ª Instância da República e Cantão de Genebra, Suíça com excepção dos segmentos decisórios constantes dos pontos 9º, 10º e 11º.
2) Condenar a requerente nas custas.

237/07.1YRCBR
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE ARCANJO
Descritores: REVISÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA
PARTILHA DOS BENS DO CASAL
ACÇÃO DE DIVÓRCIO
TRIBUNAL ESTRANGEIRO

Data do Acordão: 03/03/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: 1ª INSTÂNCIA DA REPÚBLICA E CANTÃO DE GENEBRA, SUÍÇA
Meio Processual: REVISÃO/CONFIRMAÇÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 65º-A, AL. A), 73º, Nº 1, 1096º, AL.C), E 1100º, Nº 2, DO CPC