Animal de estimação continua em imóvel arrendado. Justiça favoreceu inquilino

O Tribunal decidiu favoravelmente a um arrendatário (inquilino), para que ele pudesse manter um animal de estimação no apartamento arrendado. Havia no contrato uma cláusula que proibia a posse de animais no imóvel, mas a referida cláusula foi considerada nula.

Para o tribunal, era necessário o senhorio provar que o animal gerava prejuízo para o sossego, a salubridade ou a segurança dos restantes moradores. Além disso, o animal de estimação tinha grande importância no seio da família e no bom desenvolvimento de um filho que tem perturbações de ansiedade.

Transcreve abaixo o sumário da decisão (número V e VI):

V- Os animais, não obstante considerados pelo nosso ordenamento jurídico como coisas (nos termos do artigo 202.º, n.º 1), fazem parte daquele tipo de propriedade a que tradicionalmente se chama propriedade pessoal, ou seja, propriedade de certos bens que estão ligados à auto-construção da personalidade, razão pela qual na sua actividade valorativa e coordenadora, o juiz tem de atender ao valor pessoalmente constitutivo que o animal possa ter para o seu dono.

VI- Por essa razão não deve o arrendatário pese embora a existência de cláusula contratual proibitiva, ser compelido à retirada de um canídeo do locado quando se prove que, além de não ser fonte de qualquer prejuízo para o sossego, a salubridade ou a segurança dos restantes moradores e do locador, reveste importância no seio da família e no bom desenvolvimento de um filho que tem perturbações de ansiedade devendo, nestes casos, a referida cláusula considerar-se não escrita.

O acórdão está transcrito na íntegra, logo abaixo.

Adriano Martins Pinheiro, advogado em Portugal

https://advocaciapinheiro.com/

Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo nº 3091/15.6T8GDM.P1-Apelação
Origem: Comarca do Porto-Gondomar-Inst. Local-Secção Cível-J3
Relator: Manuel Fernandes
1º Adjunto Des. Miguel Baldaia
2º Adjunto Des. Jorge Seabra

Sumário:

I- A junção de documentos na fase de recurso estribada na circunstância de ela se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1ª instância (artigo 651.º, nº 1 do CPCivil), pressupõe a novidade da questão decisória justificativa da junção pretendida, como questão operante (apta a modificar o julgamento) só revelada pela decisão, sendo que isso exclui que a decisão se tenha limitado a considerar o que o processo já desde o início revelava ser o thema decidendum.

II- Na reapreciação da prova a Relação goza da mesma amplitude de poderes da 1.ª instância e, tendo como desiderato garantir um segundo grau de jurisdição relativamente à matéria de facto impugnada, deve formar a sua própria convicção.

III- O juiz, ao interpretar um contrato, e ao decidir da sua conformidade com a lei, não pode esquecer a lei constitucional, uma proibição, validamente estabelecida num contrato de arrendamento, segundo a lei civil, pode apresentar-se, materialmente, como violadora de direitos fundamentais do arrendatário.

IV- Ainda que estabelecida em contrato é opinião corrente que a proibição genérica de deter animais não deve ser interpretada à letra, antes deve ter em conta o concreto distúrbio provocado, segundo o substrato valorativo e os limites protectores das normas da vizinhança e da tutela da personalidade.

V- Os animais, não obstante considerados pelo nosso ordenamento jurídico como coisas (nos termos do artigo 202.º, n.º 1), fazem parte daquele tipo de propriedade a que tradicionalmente se chama propriedade pessoal, ou seja, propriedade de certos bens que estão ligados à auto-construção da personalidade, razão pela qual na sua actividade valorativa e coordenadora, o juiz tem de atender ao valor pessoalmente constitutivo que o animal possa ter para o seu dono.

VI- Por essa razão não deve o arrendatário pese embora a existência de cláusula contratual proibitiva, ser compelido à retirada de um canídeo do locado quando se prove que, além de não ser fonte de qualquer prejuízo para o sossego, a salubridade ou a segurança dos restantes moradores e do locador, reveste importância no seio da família e no bom desenvolvimento de um filho que tem perturbações de ansiedade devendo, nestes casos, a referida cláusula considerar-se não escrita.

I-RELATÓRIO

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

B…, residente no … nº .. casa ., na União das freguesias de …, … e … no município de Gondomar intentou a presente acção de despejo sob a forma de processo comum contra C…, D… e E… residentes na Rua … n º .., na União das freguesias de …, … e …, no município de Gondomar, pedindo que seja decretada a resolução do contrato de arrendamento habitacional e decretado o despejo imediato da ré do locado com a sua entrega livre de pessoas e bens, com base no incumprimento da ré; decretada a resolução do contrato de arrendamento habitacional, com base na violação das regras de higiene, de sossego, de boa vizinhança ou de normas constantes do regulamento do condomínio e decretado o despejo imediato da Ré C… do locado, livre de pessoas e bens; sem prescindir, caso se entenda que não há razão legal para a resolução do contrato, que seja decretada a retirada imediato do cão do locado; todos Réus serem condenados a pagar à autora, título de indemnização, num valor de €7,5/dia, desde a sua citação até à retirada do cão, relegando-se para execução de sentença o apuramento do seu valor global.
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Os Réus contestaram invocando que o direito da Autora caducou, pois a Ré já possui um canídeo desde 2006, com conhecimento dos senhorios, mais impugnando, parcialmente, a matéria de facto.
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A Autora respondeu impugnando os factos atinentes à caducidade. *
Foi proferido despacho saneador onde se julgou improcedente a excepção da ilegitimidade relativamente ao segundos Réus e se relegou, para momento posterior, o conhecimento e decisão relativa à excepção da caducidade.
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O processo correu a sua tramitação normal e, tendo tido lugar a audiência de discussão e julgamento foi, a final, proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente e consequentemente condenou a Ré a retirar o cão do locado absolvendo-os quanto ao demais peticionado.
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Não se conformando com o assim decidido veio a Ré C… interpor o presente recurso concluindo as suas alegações pela forma seguinte:
A- Os factos dados como não provada nos pontos 5.º ao 12º da sentença, deveriam ter sido dados como provados, atentas as declarações das testemunhas e o documento que se junta que segundo o Tribunal a quo seria elemento essencial para tais factos serem dados como provados;
B- Não existiu contradição entre as testemunhas da Autora e as da Demandada, posto que a:
C- Testemunha da Autora E…: do minuto 10:28 10:52 em sínteses refere que há 10 anos que a Demandada teve um cão;
D- Efectivamente esta testemunha confirma a existência de canídeo, não sabe por quanto tempo.
E- A única testemunha da Autora que não conheceu outro cão anteriormente foi o Sr. F…, que contudo não foi peremptório no seu discurso, pois como conta da sentença refere “que tivesse visto, ela só teve este cão”
F- conforme se constata não existiu contradição, posto que uma das testemunhas da autora refere a existência do canídeo, a outra não sabe e as quatro testemunhas da ré, cujo depoimento não foi posto em crise sendo pois considerada a sua idoneidade, aliás na sentença reproduzem-se as suas declarações, não se entende porque razão não se dão como provados os factos que comprovam a permanência da “G…” no locado em que reside a demandada.
G- Por outro lado alega o Tribunal a quo que não foi junto qualquer suporte documental que provasse que aquele animal pertencesse à Demandada. Na verdade não foi junto o registo de caninos, contudo analisando tais factos dentro da razoabilidade, a ausência de registo é perfeitamente aceitável, dado que segundo as testemunhas a cadela “G…”, terá sido acolhida em 2006, era uma cadela abandonada, rafeira, a legislação relativa ao registo dos caninos havia sido publicada pela primeira vez em 2003, ou seja tinha pouco tempo e a maioria das pessoas desconhecia esta obrigação, para além de que em regra nessa altura o que usualmente se verificava era que quem recorria ao registo eram as pessoas que compravam os canídeos e tinham atestada a sua raça e lhes colocavam o ship.
H- Por outro lado, foram juntas fotografias a fls. 9 e 10 do canídeo, e só não foram juntas acompanhadas dos filhos, porque se entendeu que se devia preservar a imagem das crianças, contudo tais fotografias existem conforme se demonstra com a junção da mesma às presentes alegações, nos termos do disposto no art.º 651º do C.P.C., já que tal junção só se revelou importante em virtude do julgamento e da posição assumida na sentença.
I- Devem ser considerados como provados os factos alegados pela Demandada nos artigos 3º ao 5.º e 18º ao 22º da contestação, alterando-se por consequência a fundamentação dada na sentença.
J- os senhorios não denunciando o contrato como o poderiam ter feito, já que se trata de contrato de duração limitada outorgado em 2004 e abstendo-se de qualquer procedimento legal nesse sentido, não obstante as sucessivas renovações contratuais, ao exercerem neste momento tal direito em violação do direito de propriedade, traduzido na posse de um animal de companhia, o cão, traduz o exercício ilegítimo de um direito, por aplicabilidade da figura do abuso de direito, art.º 334º do C.C.
K- Sem prescindir, caso assim não se entenda;
L- O Tribunal ao quo, condenou a Demandada a retirar o cão do locado, por considerar que a ré se mantém em incumprimento de uma cláusula do contrato de arrendamento, que refere “Fica o 2.º outorgante impedido de possuir cão como animal doméstico”.
M- A decisão de que se recorre, exigia uma fundamentação mais cuidada e a ponderação das circunstâncias que envolvem o presente caso posto que estamos perante um ser vivo, que é tido como um elemento da família e não perante uma coisa que se abandona a qualquer momento, cuja orientação nacional em termos de fundamentação é a protecção do animais.
N- Ficou provado, à contrário, que estamos perante um canídeo que não perturba, é meigo e não intimidante, late pouco, em síntese não estão em causa os direitos de personalidade da senhoria;
O- Ou seja, in casu, estamos perante uma conflitualidade entre o direito de propriedade da Demandada, a posse do cão, e o direito ao cumprimento pontual do contrato da senhoria,
P- Nos termos do art.º 335º n.º 2 do C.Civil, nestes casos deve-se optar pelo direito superior. Conforme supra se referiu o canídeo de nome “H…” não causa qualquer prejuízo à senhoria
Q- Por outro lado, ficou provado que o canídeo reveste no seio desta família, de uma particular importância, posto que, se revela muito importante no desenvolvimento do I…, filho menor da Demandada que tem perturbações de ansiedade, conforme documento de fls. 68 (atestado médico) e declarações de J… e K…, conforme consta do 3.º parágrafo da sentença a fls. 7.
R- Ora avaliando os valores que estão em conflito atendendo aos dados constantes dos autos, temos um animal de companhia que é propriedade da Demandada, que nos termos do disposto no art.º 1305º do C.Civil que tem direito a exercê-lo de modo pleno, exigindo que terceiros se abstenham de invadir ou interferir na sua esfera jurídica. Temos ainda que, tal direito está a ser exercido de forma equilibrada e moderada, sem ofender direitos de terceiros e muito menos os da senhoria que se move por instintos de vingança, posto que em Agosto de 2015 teve uma discussão com a Demandada por causa das bolas das crianças e anunciou que a Demandada se iria arrepender (minuto 27:17 do depoimento da E… e minuto 8:59 ao 10:12 do depoimento da J…
S- Ora estes factos não são essenciais, mas são factos instrumentais, que foram discutidos em sede de audiência de julgamento, que em sede de decisão devem ser utilizados para formar a convicção, o que in casu, não sucedeu atenta a ausência total de análise crítica quanto a estes factos, art.º 552º n.º 1 al. d), à contrário e art.º 5º n.º 2 al. a) do CPC.
T- O Tribunal a quo, deveria ter realizado uma avaliação concreta do circunstancialismo fáctico da situação específica, atendendo a princípios de proporcionalidade, adequação e razoabilidade, o que não fez.
U- Deter um animal numa habitação, cai no âmbito da utilização normal do locado. Caso a caso tem que se ponderar o valor específico que o animal tem para com a família em que está integrado, posto que passa a fazer parte constituinte da personalidade do seu dono, enriquecem a sua vida, têm um benefício terapêutico, principalmente para as crianças que com estes animais aprendem o valor da responsabilidade, da disciplina, desenvolvem sentimentos de protecção e de generosidade.
V- De acordo com a mais recente doutrina no âmbito dos condomínios, a Dr.ª Sandra Passinhas, na sua dissertação “Os animais e o regime da Propriedade horizontal”, a mesma refere que “os animais não participam no agregado familiar como coisas mas como conviventes”, e enfatiza a forma como na sociedade existe um crescente reconhecimento, do papel dos animais na realização pessoal do individuo e da sua importância como membros da colectividade familiar. Defendendo a ilegalidade das normas do regulamento que interferem no direito de propriedade dos condóminos.
W- Ao Tribunal incumbe no âmbito do disposto no art.º 202.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa, dirimir os conflitos de interesses entre particulares e muitas vezes uma proibição validamente constituída no âmbito de um contrato, por força da lei civil pode apresentar-se como violadora de direitos fundamentais.
X- Ora os animais enquanto coisas que são (art. 202º do CC), enquadram-se no âmbito do direito de propriedade e estão directamente ligados à auto-construção da personalidade, constituem um dos meios mediante o qual a pessoa se constrói no mundo, o critério para avaliar o valor dessa coisa no seio da família é o da ponderação do sofrimento que causará a esta família a sua perda.
Y- Termos em que ponderados tais interesses se deve considerar que a cláusula inserida no contrato é nula, e face à colisão de valores jurídicos deve prevalecer o de maior valor, ou seja o direito de propriedade e a saúde do menor enquanto pessoa em desenvolvimento, nos termos do disposto no art.º 335º, 1305º, não obstante o consentimento tácito do lesado, caso se considerem provados os factos impugnados, nos termos do disposto no art.º 340º todos do C. Civil.
Z- O Tribunal a quo violou os normativos do C. Civil 334º, 335º, 1305º e não cumpriu com os dispositivos que o obrigam a considerar os factos instrumentais e a fundamentar de forma critica a sentença nos termos do disposto no art.º 5º, art.º 607 n.º 4 e art.º 615 n.º 1 al. d) todos do CPC.
AA- Termos em que a decisão proferido deve ser revogada e substituída por outra que considere nula a cláusula ínsita no contrato de arrendamento, que proíbe a Demandada a ter cão como animal de estimação, mantendo-se o canídeo no locado.
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Devidamente notificada contra-alegou a Autora concluindo pelo não provimento do recurso.
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Corridos os vistos legais cumpre decidir.
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II- FUNDAMENTOS

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso-cfr. artigos 635.º, nº 4, e 639.º, nºs 1 e 2, do C.P.Civil.
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No seguimento desta orientação são duas as questões que importa apreciar:
a)- saber se o tribunal recorrido cometeu erro na apreciação da prova e assim na decisão da matéria de facto;
b)- decidir em conformidade face à alteração, ou não, da matéria factual e, mesmo não se alterando esta, se a subsunção jurídica se encontra correctamente feita.
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A)- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

É a seguinte a matéria de facto que vem dada como provado pelo tribunal recorrido:
A) É a aqui Autora a única dona e exclusiva proprietária, correspondente ao 1º Andar do prédio urbano sito no …, com entrada pelo n.º 71, casa 1, inscrito na respectiva matriz predial sob o art.º 14542, da competente matriz urbana da União das freguesias de …. (…), … e …, município de Gondomar (artigo 1.º da petição inicial–matéria assente).
B) Tal prédio urbano adveio à propriedade da aqui Autora por partilha após óbito do seu marido, ocorrido a 30/09/2014, Gondomar (artigo 2.º da petição inicial–matéria assente).
C) À data da transmissão da propriedade deste imóvel para a autora, vigorava um contrato de arrendamento celebrado por escrito em 01/05/2004 com os réus para o r/c andar do referido imóvel com entrada pelo n.º ..–casa . Gondomar (artigos 3.º e 4.º da petição inicial–matéria assente).
D) Na posição de proprietários e senhorios constavam a autora e o seu falecido marido e na qualidade de arrendatária, a ré C… e na qualidade de fiadores os 2 ª Réus (artigo 5.º da petição inicial-matéria assente).
E) A autora e falecido marido, como proprietários do citado andar do imóvel por contrato de arrendamento celebrado em 01/05/2004, pelo período de 5 anos, renovado por iguais períodos, deram de arrendamento à Ré C… a referida habitação, que esta tomou no termos e condições (artigo 6.º da petição inicial–matéria assente).
F) Na cláusula décima terceira do contrato de arrendamento é expressamente referido: “Fica o 2.º outorgante impedido de possuir cão como animal de doméstico” (artigo 10.º da petição inicial–matéria não impugnada) (v. doc. fls. 10).
G) Pelo menos desde meados de Março de 2015 até à presente data, a inquilina, ré C… tem no interior da sua casa (artigo 11.º da petição inicial).
H) O mesmo animal ladra, corre, faz ruído (artigo 13.º da petição inicial).
I) A autora, por intermédio da sua mandatária, aqui signatária, remeteu em 02/09/2015 carta registada com aviso de recepção à ré, comunicando: “caso não proceda à retirada do cão da habitação até ao próximo dia 15 (…) será a nossa cliente obrigada a intentar (..) respectiva acção de despejo (…)” (artigo 15.º da petição inicial e doc. de fls. 28).
J) Na data estipulada pela autora a ré não procedeu à retirada do animal, tal como lhe foi devidamente comunicado (artigo 16.º da petição inicial).
L) A autora no dia 06/10/2015 participou à Delegação de Saúde, assim como, aos Serviços do Ambiente da Câmara Municipal … (artigo 17.º da petição inicial e doc. de fls. 30 e 31).
M) O canídeo de nome “H…”, actualmente reside com o agregado familiar, na habitação que está arrendada pela ré (artigo 23.º da contestação).
N) O canídeo, é da raça … (artigo 5.º da contestação).
O) Os cães da referida raça são conhecidos por serem sociáveis, e ser pouco latidor (artigo 26.º da contestação)
P) O canídeo reveste importância no seio da família e no bom desenvolvimento do I…, que tem perturbações de ansiedade (artigos 35.º e 36.º da contestação).
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Factos não provados:

1.º- Artigo 11.º da petição inicial “de grande porte e de raça aparentemente proibida”;
2.º- Artigo 13.º da petição inicial–“intimida e incomoda os habitantes do prédio e as pessoas que lá se deslocam”;
3.º- A falta de limpeza por parte da aqui Ré C… é de tal forma notória, que os vizinhos falam mesmo de um ambiente propício à existência de ratos e demais animais e consequentemente ambiente que coloca em risco a saúde pública (artigo 14.º da petição inicial);
4.º- O latir do canídeo dia e noite, os maus cheiros causados pelo local inadequado onde está instalado e a poluição do ar são condições suficientes para colocar em risco tanto a higiene, como o sossego, daqueles que habitam no prédio descrito no item 1 desta peça processual, como nos demais prédios confinantes (artigo 25.º da petição inicial).
5.º- A ré já possui canídeo desde, pelo menos o ano de 2006, com conhecimento, à data dos senhorios (artigo 3.º da contestação).
6.º- Tratava-se de uma cadela, cujo nome era “G…”, sendo que conviveu durante pelo menos seis anos, no agregado familiar da ré, à vista dos senhorios e de todos quantos por ali passassem (artigo 4.º da contestação);
7.º- Sendo que os senhorios inicialmente reclamaram e posteriormente consentiram, pelo menos de forma tácita na existência de canídeo no locado arrendado (artigo 5.º da contestação).
8.º- Após o nascimento dos seus filhos em 2005 e 2006, a ré por questões associadas ao bom desenvolvimento dos filhos optou por adquirir uma cadela de nome “G…”; (artigo 18.º da contestação).
9.º- Que viveu no seio familiar durante seis anos (artigo 19.º da contestação).
10.º- À vista de todos e com conhecimento dos senhorios (artigo 20.º da contestação).
11.º- O senhorio, inicialmente, quando avistou a cadela, suscitou a questão de não poder ter canídeos em casa e face à explicação de que era importante para o desenvolvimento dos meninos, principalmente para o I… que necessitava de ser estimulado (artigo 21.º da contestação).
12.º- Estes acabaram por aceitar a presença da “G…” e nunca mais colocaram qualquer problema (artigo 22.º da contestação).
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III. O DIREITO

Questão prévia
Na sua alegação requerem os apelantes a junção aos autos de um documento (fotografia) de que apenas agora tiveram conhecimento e que, por isso mesmo, não puderam em momento anterior carrear para o processo.
Invocam os Autores, para sustentar a admissibilidade da junção deste documento nesta fase do processo, o disposto nos artigos 651.º n.º 1 e 425.º do Código de Processo Civil.
Vejamos, então, se tal admissão se mostra possível.
À questão da junção de documentos na fase de recurso se refere expressamente o artigo 651º, nº 1 do CPC, cujo teor ora se transcreve:
Artigo 651.º
Junção de documentos e de pareceres
1-As partes apenas podem juntar documentos às alegações nas situações excepcionais a que se refere o artigo 425.º ou no caso da junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na primeira instância.
E dispõe o artigo 425.º para o qual remete o texto da norma acabada de transcrever:
Artigo 425.º
Apresentação em momento posterior
Depois do encerramento da discussão só são admitidos, no caso de recurso, os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento.
E importará ter presente, enfim, enquanto norma contendo o “princípio geral” que referencia, na dinâmica do processo, o momento da apresentação de prova por documentos, o artigo 423.º do CPC:
Artigo 423.º
Momento da Apresentação
1-Os documentos destinados a fazer prova dos fundamentos da acção ou da defesa devem ser apresentados com o articulado em que se aleguem os factos correspondentes.
2-Se não forem juntos com o articulado respectivo, os documentos podem ser apresentados até 20 dias antes da data em que se realize a audiência final, mas a parte é condenada em multa, excepto se provar que os não pôde oferecer com o articulado.
3-Após o limite temporal previsto no número anterior, só são admitidos os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento, bem como aqueles cuja apresentação se tenha tornado necessária em virtude de ocorrência posterior.
Da concatenação destas normas decorre, que a junção de documentos em sede de recurso (junção que é positivamente considerada apenas a título excepcional) depende da caracterização (rectius, da alegação e da prova) pelo interessado nessa junção de uma de duas situações: (1) a impossibilidade de apresentação do documento anteriormente ao recurso, valendo aqui a remessa do artigo 651º, nº 1 para o artigo 425º; (2) o ter o julgamento da primeira instância introduzido na acção um elemento de novidade que torne necessária a consideração de prova documental adicional, que até aí-até ao julgamento em primeira instância-se mostrava desfasada do objecto da acção ou inútil relativamente a este.
Os documentos em referência nos citados artigos são habitualmente designados de documentos supervenientes, sendo que, e a sua superveniência pode ser objectiva, nos casos em que o documento só foi produzido em momento posterior ao do encerramento da discussão ou subjectiva, quando o documento, apesar de já existir, só chegou ao conhecimento da parte depois desse momento.
Como se sabe, a junção de documentos na instância de recurso obedece, como não poderia deixar de ser, a regras particularmente restritivas.
Como supra se referiu, com as suas alegações do recurso, as partes só podem juntar documentos, objectiva ou subjectivamente, supervenientes, isto é, cuja apresentação foi impossível até à apresentação dessas alegações ou cuja junção se torne necessária em virtude do julgamento proferido na 1ª instância (artº 524 nºs 1 e 2 e 693-B, 1ª parte, do CPC).
Todavia, esta faculdade não compreende o caso de a parte pretender oferecer um documento que poderia–e deveria–ter oferecido naquela instância.
Com efeito, quando ocorra uma dessas situações, a parte que pretenda oferecer o documento deve, demonstrar a impossibilidade da junção do documento no momento normal, ou seja, alegando e demonstrando o carácter objectivo ou subjectivamente superveniente desse mesmo documento.
Ora, no que concerne à superveniência subjectiva não basta invocar que só se teve conhecimento da existência do documento depois do encerramento da discussão em 1ª instância, pois que, dessa forma permitir-se-ia que fossem acolhidas todas as incúrias e imprevidências das partes.
Portanto, a parte deve alegar e provar a impossibilidade da sua junção naquele momento e, como tal, que o desconhecimento da existência do documento não deriva de culpa sua.
Efectivamente, a superveniência subjectiva pressupõe o desconhecimento não culposo da existência do documento, sendo que, em qualquer caso, a parte deve alegar e demonstrar que o desconhecimento do documento não ficou a dever-se uma negligência sua, já que só desse modo o documento pode ter-se por subjectivamente superveniente.[1]
Sopesando, não basta alegar a superveniência subjectiva do documento, sendo ainda exigível à parte a prova quer do não conhecimento tempestivo do documento, quer da inimputabilidade a uma culpa própria da ignorância da existência dele.
Todavia, só são atendíveis razões das quais resulte a impossibilidade daquela pessoa, num quadro de normal diligência referida aos seus interesses, ter tido conhecimento anterior da situação ou ter tido anteriormente conhecimento da existência do documento, pois que, como se refere no Ac. da RC de /11/2014[2] a “(…) a questão não é o que “não se sabe”, “porque não se sabe”- ninguém sabe aquilo que não teve a curiosidade ou o cuidado de averiguar-a questão é o que justificadamente alguém “não podia saber, mas veio a saber mais tarde” e só neste caso se fala em superveniência subjectiva.”
Feitos estes breves considerandos importa, desde logo, dizer que não foi alegado pelos apelantes quer o carácter objectivo ou subjectivamente superveniente do documento em causa (fotografia), pois que, como resulta do teor das alegações esse mesmo documento já existia na posse dos apelantes e só não foi junto, no seu dizer, para preservar a imagem das crianças.
Alegam, todavia, os apelantes que a sua junção se tornou necessária em virtude do julgamento proferido na 1ª instância nos termos estatuídos no artigo 651.º, nº 1 do CPCivil.
O normativo em referência admite, efectivamente, no seu trecho final, a junção de documentos com as alegações de recurso nos casos em que o julgamento proferido em primeira instância torne necessária a consideração desse documento.
Todavia, pressupõe esta situação, a novidade da questão decisória justificativa da junção pretendida, como questão operante (apta a modificar o julgamento) só revelada pela decisão, sendo que isso exclui que a decisão se tenha limitado a considerar o que o processo já desde o início revelava ser o thema decidendum.[3]
Com efeito, como refere expressivamente António Santos Abrantes Geraldes[4], “[p]odem […] ser apresentados documentos quando a sua junção apenas se tenha revelado necessária por virtude do julgamento proferido, máxime quando este se revele de todo surpreendente relativamente ao que seria expectável em face dos elementos já constantes do processo” e mais à frente acrescenta[5] “A jurisprudência anterior sobre esta matéria não hesita em recusar a junção de documentos para provar factos que já antes da sentença a parte sabia estarem sujeitos a prova, não podendo servir de pretexto a mera surpresa quanto ao resultado”.
A este propósito cita-se também o Ac. do STJ de 12/01/de 1994[6] onde, em considerações que se mantêm pertinentes mesmo na actual lei adjectiva, se refere que o legislador, na última parte do artigo 706.º do CPCiivl (equivalente ao actual art. 651.º), ao permitir às partes juntar documentos às alegações no caso de a junção apenas se tornar necessária em virtude do julgamento proferido na 1ª instância “quis cingir-se aos casos em que, pela fundamentação da sentença, ou pelo objecto da condenação, se tornou necessário provar factos com cuja relevância a parte não poderia razoavelmente contar antes de a decisão ser proferida, significando o advérbio “apenas”, inserto no segmento normativo em causa, que a junção só é possível se a necessidade era imprevisível antes de proferida a decisão em 1ª instância”.
Assim, a junção de documentos às alegações de recurso só poderá ter lugar se a decisão da 1ª instância criar pela primeira vez a necessidade de junção de determinado documento, quer quando se baseie em meio probatório não oferecido pelas partes, quer quando se funde em regra de direito com cuja aplicação ou interpretação as partes não contavam.
Ora, nada disso ocorre na situação sub judice, pois que, a existência de um outro cão no locado durante vários anos, diferente do que hoje aí se encontra, foram factos alegados pela recorrente na respectiva contestação e, portanto, sabia, tendo sido impugnados, estarem os mesmos carecidos de prova, sendo que, o tribunal recorrido na sua fundamentação apenas não os considerou provados. Para além disso, a decisão recorrida limitou-se a considerar o que o processo já desde o início revelava ser o thema decidendum.
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Em consequência, recusa-se a junção do referido documento e consequentemente, ordena-se o seu desentranhamento, condenando-se a recorrente em multa que se fixa em 1 (uma) UC nos termos do artigo 543.º, nº 2 do CPC e do artigo 27.º, nº 1 e 3 do Regulamento das Custas Processuais.
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Como supra se referiu a primeira questão que importa apreciar e decidir consiste em:

a)- saber se o tribunal recorrido cometeu erro na apreciação da prova e assim na decisão da matéria de facto.
Como resulta do corpo alegatório e das respectivas conclusões a Ré recorrente impugnou a decisão da matéria de facto tendo dado cumprimento aos ónus impostos pelo artigo 640.º, nº 1 als. a), b) e c) do CPCivil, pois que, faz referência aos concretos pontos da matéria de facto que considera incorrectamente julgados, indica os elementos probatórios que conduziriam à alteração daqueles pontos nos termos por ela propugnados, a decisão que no seu entender deveria sobre eles ter sido proferida e ainda as passagens da gravação em que se funda o recurso e que transcreveu [nº 2 al. a) do citado normativo].
Cumpridos aqueles ónus e, portanto, nada obstando ao conhecimento do objecto de recurso nesse segmento, a Ré apelante não concorda com a decisão sobre a fundamentação factual relativa aos pontos 5º a 12º dos factos não provados os quais, em seu entender deveriam ter sido dados como provados.
Quid iuris?
O controlo de facto, em sede de recurso, tendo por base a gravação e/ou transcrição dos depoimentos prestados em audiência, não pode aniquilar (até pela própria natureza das coisas) a livre apreciação da prova do julgador, construída dialecticamente na base da imediação e da oralidade.
Efectivamente, a garantia do duplo grau de jurisdição da matéria de facto não subverte o princípio da livre apreciação da prova (consagrado no artigo 607.º nº 5) que está deferido ao tribunal da 1ª instância, sendo que, na formação da convicção do julgador não intervêm apenas elementos racionalmente demonstráveis, já que podem entrar também elementos que em caso algum podem ser importados para a gravação vídeo ou áudio, pois que a valoração de um depoimento é algo absolutamente imperceptível na gravação/transcrição.[7]
Ora, contrariamente ao que sucede no sistema da prova legal, em que a conclusão probatória é prefixada legalmente, no sistema da livre apreciação da prova, o julgador detém a liberdade de formar a sua convicção sobre os factos, objecto do julgamento, com base apenas no juízo que fundamenta no mérito objectivamente concreto do caso, na sua individualidade histórica, adquirido representativamente no processo.
“O que é necessário e imprescindível é que, no seu livre exercício de convicção, o tribunal indique os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela sobre o julgamento do facto como provado ou não provado”.[8]
De facto, a lei determina expressamente a exigência de objectivação, através da imposição da fundamentação da matéria de facto, devendo o tribunal analisar criticamente as provas e especificar os fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador (artigo 607.º, nº 4 do CPCivil).
Todavia, na reapreciação dos meios de prova, a Relação procede a novo julgamento da matéria de facto impugnada, em busca da sua própria convicção, desta forma assegurando o duplo grau de jurisdição sobre essa mesma matéria, com a mesma amplitude de poderes da 1.ª instância.[9]
Impõe-se-lhe, assim, que “analise criticamente as provas indicadas em fundamento da impugnação, quer a testemunhal, quer a documental, conjugando-as entre si, contextualizando-se, se necessário, no âmbito da demais prova disponível, de modo a formar a sua própria e autónoma convicção, que deve ser fundamentada”.[10]
Importa, porém, não esquecer que, como atrás se referiu, se mantêm vigorantes os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova e guiando-se o julgamento humano por padrões de probabilidade e nunca de certeza absoluta, o uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto deve restringir-se aos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova disponíveis e aquela decisão, nos concretos pontos questionados.[11]
Tendo presentes estes princípios orientadores, vejamos agora se assiste razão à Ré apelante, neste segmento recursório da impugnação da matéria de facto, nos termos por ela pretendidos.
*
Os factos dados como não provados pelo tribunal recorrido e objecto de impugnação tinham a seguinte redacção:
5.º – A Ré já possui canídeo desde pelo menos o ano de 2006, com conhecimento, à data dos senhorios (artigo 3.º da contestação);
6.º- Tratava-se de uma cadela, cujo nome era “G…”, sendo que conviveu durante pelo menos seis anos, no agregado familiar da Demandada, à vista dos senhorios e de todos quantos por ali passassem, (artigo 4.º da contestação);
7.º- Sendo que os senhorios inicialmente reclamaram e posteriormente consentiram, pelo menos de forma tácita na existência de canídeo no locado arrendado (artigo 5.º da contestação);
8.º Após o nascimento dos seus filhos em 2005 e 2006, por razões associadas ao bom desenvolvimento dos filhos optou por adquirir uma cadela de nome “G…” (artigo 18º.º da contestação);
9.º Que viveu no seio familiar durante seis anos, (artigo 19.º da contestação);
10.º À vista de todos e com conhecimento dos senhorios, (artigo 20.º da contestação);
11.º O senhorio, inicialmente, quando avistou a cadela, suscitou a questão de não poder ter canídeos em casa e face á explicação de que era importante para o desenvolvimento dos meninos, principalmente para o I… que necessitava de ser estimulado (artigo 21.º da contestação).
12.º Estes acabaram por aceitar a presença da “G…” e nunca mais colocaram qualquer problema (artigo 22.º da contestação).
*
Na fundamentação da decisão da matéria de facto o tribunal recorrido quanto à não prova deste quadro factual discorreu do seguinte modo:
“Quanto à alegada existência e permanência de canídeo anterior, é de referir que as testemunhas E… e F… desconheciam a existência anterior de outro canídeo no local arrendado pela ré e a ré não juntou qualquer prova documental que tal animal lhe pertencesse e com ela vivesse (por exemplo, registo ou declaração para registo do canino, fotografia do canino no local arrendado ou na companhia de algum dos seus filhos).
Assim, em face de tais discrepâncias quanto à prova testemunhal e na ausência de outro meio de prova considerei como não provado os artigos 5.º a 12.º dos factos não provados”.
Refere a este respeito a recorrente que não existe qualquer contradição entre o depoimento das testemunhas arroladas pela Autora apelada e o depoimento das testemunhas que ela indicou.
Tal asserção não se mostra, todavia, correcta.
Com efeito, a testemunha E… refere que o padrinho (senhorio do locado e já falecido) lhe referiu que a inquilina levou um cão para o locado, mas que quando descobriu ele obrigou-a a retira-lo de lá.
Por sua vez a testemunha F… referiu que, fosse do seu conhecimento, a apelante só teve o cão actual.
Ora, concatenando estes depoimentos com os das testemunhas arroladas pela recorrente, como dizer-se que entre eles não existem discrepâncias?
Repare-se que a testemunha E… o que afirma no seu depoimento é substancialmente diferente daquilo que as testemunhas da recorrente referem nos seus.
Na verdade, as testemunhas da recorrente o que referem é que a apelante teve no locado, antes do actual, e durante vários anos um outro canídeo.
Acontece que, esse facto não é corroborado no depoimento da testemunha E… e, muito menos, no depoimento da testemunha F….
Diga-se, aliás, que a testemunha J…, confirmando embora a existência de um outro canídeo pertencente à recorrente há cerca de 10 anos, acaba por afirmar, não obstante não saber bem a história, que pensa que aquela o terá dado à mãe não sabendo, contudo, qual terá sido o motivo.
Neste conspecto a própria testemunha K… sempre foi dizendo que o falecido senhorio não queria animal nenhum mas que depois se foi compondo.
Por sua vez a testemunha M… além de ter dito no início do seu depoimento que vinha confirmar aquilo que lhe pediram, vem depois dizer que a apelante já tem o canídeo actual há cerda de 4 ou 5 anos, aliás, e quanto a este aspecto, a testemunha J… afirma também que o actual canídeo está com a apelante há mais de 3 anos, espaço temporal este que é contrariado pelo averbamento do mesmo em nome da apelante com data de 09/11/2015.
Perante os citados depoimentos torna-se evidente que, com base neles, não se pode dar como provada a matéria dos pontos 5º a 12 dos factos não provados, sendo ainda de salientar que as testemunhas indicadas pela recorrente, sobre a referida matéria factual, limitaram-se a confirmar a existência de um outro canídeo, nada tendo referido quanto ao demais aí vertido.
A este propósito, embora deslocado do segmento correcto (impugnação da matéria de facto) vem ainda a apelante dizer que o tribunal recorrido devia ter tomado em consideração os factos instrumentais relativos a um incidente que houve entre ela e a Autora por causa de “umas bolas” que o filho da apelante deixava cair para o pátio daquela.
É certo que o artigo 5.º do CPCivil que define em sede de matéria de facto o que constitui o ónus de alegação das partes e como se delimitam os poderes de cognição do tribunal, refere no seu nº 2 que além dos factos articulados pelas partes, são ainda considerados pelo juiz: a) os factos instrumentais que resultem da instrução da causa.
Ora, factos instrumentais são aqueles de cuja prova se pode inferir a demonstração dos correspondentes factos principais mediante presunção judicial, assumindo uma função probatória e não uma função de preenchimento e substanciação jurídico-material das pretensões e da defesa.
Assim sendo, que factos essenciais podiam ser dados como provados com recurso aos factos instrumentais concernentes a esse incidente?
Não se descortina quais, pois que o objecto do processo, o seu thema decidendum, nada tem que ver com qualquer questão das bolas e com a eventual ameaça feita pela Autora à recorrente.
Como assim, não tendo os referidos factos instrumentais qualquer conteúdo útil, nos termos referidos, não tinha o tribunal que os ter tomado em consideração.
*
Improcedem, assim, as conclusões A) a J) formuladas pela recorrente.
*
Permanecendo inalterado o quadro factual dado como assente pelo tribunal recorrido a segunda questão que vem colocada no recurso prende-se com:

b)- saber se a sua subsunção se mostra correctamente efectuada.

Como emerge da decisão recorrida aí se entendeu que, não existindo embora fundamento para a resolução do contrato de arrendamento, a Ré ao manter no locado um canídeo está incumprir o contrato e, por assim ser, determinou a sua retirada desse espaço.
A referida decisão entronca, como dela decorre, de ter sido estipulado no contrato de arrendamento cláusula que impedia a apelante de possuir cão como animal doméstico.
Deste entendimento dissente a apelante dizendo, no essencial, que essa cláusula é nula, porque existindo colisão de direitos, deve prevalecer a saúde do seu filho menor por o canídeo revestir importância no seio da família e no bom desenvolvimento daquele que tem perturbações de ansiedade.
Quid iuris?
A primeira fonte das obrigações na sistematização da lei é constituída pelos contratos.
O actual Código Civil português não define expressamente a figura do contrato ao contrário do que acontecia com o Código de 1867, onde no seu artigo 641.º se “definia o contrato como o acordo, por que duas ou mais pessoas transferem entre si algum direito, ou se sujeitam a alguma obrigação”.
Apesar disso pode definir-se o contrato como sendo o acordo vinculativo de vontades, assente sobre duas ou mais declarações de vontade (oferta ou proposta, de um lado; aceitação, do outro), contrapostas mas perfeitamente harmonizáveis entre si, que visam estabelecer uma regulamentação unitária de interesses.[12]
Mas mais que uma das fontes das obrigações, o contrato como negócio bilateral que é, pode considerar-se em certo sentido a fonte natural das relações de crédito, pois que é por vontade de ambos os titulares (através do acordo contratual) que o vínculo em princípio há-de ser constituído.
Na nossa lei civil vigente, a maior parte do regime comum aos diferentes contratos, no que designadamente se refere à sua formação, capacidade dos contraentes, forma de declaração, perfeição do acordo, requisitos substanciais de validade, cláusulas acessórias etc. é fixada na parte geral, dentro do capítulo que tem por objecto o negócio jurídico (artigos 217.º e seguintes do C.Civil).
Acontece que à teoria geral das obrigações interessa apenas os efeitos do contrato como fonte de relações jurídicas creditórias, e esse aspecto importante da vida dos contratos desdobra-o a lei em duas partes: numa delas estabelece a disciplina de cada um dos vários contratos em especial (contratos típicos ou nominados) que, sendo as espécies mais correntes no comércio jurídico servem de padrão ou modelo na grande massa das operações negociais (artigos 874.º a 1250.º do C.Civil) na outra que vai do artigo 405.º ao artigo 456.º, traça uma espécie de teoria geral do contrato, com as regras aplicáveis, em princípio não só aos contratos em especial regulados na lei, mas a quaisquer outros contratos celebrados pelas partes.
Os princípios fundamentais em que assenta toda a disciplina legislativa dos contratos são o princípio da autonomia privada que atribui aos contraentes o poderem de fixarem, em termos vinculativos a disciplina que mais convém aos seus próprios interesses; o princípio da confiança segundo o qual cada contraente deve responder pelas expectativas que justificadamente cria, com a sua declaração, no espírito da contraparte; e o princípio da justiça comutativa segundo o qual nos contratos onerosos à prestação de cada um dos contraentes deve corresponder uma prestação de valor equivalente da parte do outro contraente.
O princípio da autonomia privada reveste, na área específica dos negócios bilaterais ou plurilaterais, a forma de liberdade contratual.
Ora, o princípio basilar que serve de introdução à teoria dos contratos é, efectivamente, o da liberdade contratual descrito no artigo 405.º do C.Civil. Trata-se da faculdade que as partes têm de, dentro dos limites da lei, fixar livremente o conteúdo dos contratos, celebrar contratos diferentes dos prescritos no Código ou incluir neles as cláusulas que entendam.
Antes, porém, da liberdade de fixação do conteúdo do contrato está implicitamente consagrada no referido normativo legal a liberdade de contratar, que como o próprio nome indica consiste na faculdade reconhecida às pessoas de criarem livremente entre si acordos destinados a regular os seus interesses recíprocos.
Por outro lado, a liberdade reconhecida às partes aponta à criação do contrato, e o contrato é um instrumento jurídico vinculativo, é um acto com força obrigatória, e digamos assim a lex contractus. Portanto, liberdade de contratar é por conseguinte a faculdade de criar um instrumento objectivo, um pacto que, uma vez concluído, nega a cada uma das partes a possibilidade de se afastar (unilateralmente) dele-pacta sunt servanda-na medida em que a promessa livremente aceita por cada uma das partes a possibilidade cria expectativas fundadas junto da outra e acordo realiza fins dignos da tutela do direito.
Ora, foi dentro desta liberdade contratual que entre as partes foi celebrado o contrato de arrendamento a que se refere a alínea E) da fundamentação factual e onde se estipulou na cláusula décima terceira o seguinte:
“Fica o 2.º outorgante impedido de possuir cão como animal doméstico”.
Portanto, de acordo com a referida cláusula, a apelante estava impedida de possuir no locado um cão como animal doméstico.
Acontece que, tal como decorrente da alínea G) da fundamentação factual, pelo menos desde meados de Março de 2015 até à presente data, a apelante tem no interior do locado um cão.
A questão que agora se coloca é se, apesar de tal cláusula contratual, a apelante pode, ou não, ter no locado o canídeo em causa.
A proibição de deter animais de companhia numa fracção autónoma pode ser estabelecida no título constitutivo da propriedade horizontal ou no regulamento do condomínio aí inserido, pode ser acordada pelos condóminos entre si e pode, numa relação locatícia, ser acordada entre as partes.
No caso sub judice, como já supra se referiu, essa proibição foi estabelecida pelas partes no contrato de arrendamento que entre elas celebraram.
Importa, porém, antes de prosseguirmos a nossa análise sobre o caso concreto, referir que a detenção de um animal numa fracção autónoma tem também algumas limitações de ordem pública.
Efectivamente, o Decreto-Lei n.º 276/2001, de 17 de Outubro[13], que estabelece as normas tendentes a pôr em aplicação a Convenção Europeia para a Protecção dos Animais de Companhia, considera animais de companhia aqueles detidos ou destinados a serem detidos pelo homem, designadamente no seu lar, para entretenimento e companhia. Por detentor, o artigo 2.º, alínea v), considera qualquer pessoa, singular ou colectiva, responsável pelos animais de companhia para efeitos de reprodução, criação, manutenção, acomodação ou utilização, com ou sem fins comerciais.
Nos termos do artigo 6.º, do citado diploma incumbe ao detentor do animal o dever especial de o cuidar, de forma a não pôr em causa os parâmetros de bem-estar, bem como o de o vigiar, de forma a evitar que este ponha em risco a vida ou a integridade física de outras pessoas e animais e o artigo 8.º estabelece que os animais devem dispor do espaço adequado às suas necessidades fisiológicas e etológicas e o artigo 15.º determina que os alojamentos devem assegurar que as espécies animais neles mantidas não possam causar quaisquer riscos para a saúde e para a segurança de pessoas, outros animais e bens.
Por sua vez o Decreto-Lei n.º 314/2003, de 17 de Dezembro, que aprova o Programa Nacional de Luta e Vigilância Epidemiológica da Raiva e Outras Zoonoses, estabelece no seu artigo 3.º que:

  1. O alojamento de cães e gatos em prédios urbanos, rústicos ou mistos, fica sempre condicionado à existência de boas condições do mesmo e à ausência de riscos higío-sanitários relativamente à conspurcação ambiental e doenças transmissíveis ao homem.
  2. Nos prédios urbanos podem ser alojados até três cães ou quatro gatos adultos por cada fogo, não podendo no total ser excedido o número de quatro animais, excepto se, a pedido do detentor, e mediante parecer vinculativo do médico veterinário municipal e do delegado de saúde, for autorizado alojamento até ao máximo de seis animais adultos, desde que se verifiquem todos os requisitos higío-sanitários e de bem-estar animal legalmente exigidos.
  3. No caso de fracções autónomas em regime de propriedade horizontal, o regulamento do condomínio pode estabelecer um limite de animais inferior ao previsto no número inferior”.
    Evidentemente que os números estabelecidos por este diploma devem ser interpretados de acordo com o âmbito de protecção das normas aí estabelecidas: a luta conta as zoonoses transmissíveis pelos carnívoros domésticos, ou seja, este Decreto-Lei não pretende modificar o regime jurídico das relações de vizinhança ou do próprio conteúdo do direito de propriedade sobre uma fracção autónoma, estabelecendo, sem mais, a proibição de deter mais de três cães, quatro gatos ou quatro animais por fracção autónoma.
    Feito este parêntesis, analisemos agora a interpretação a dar ao contrato celebrado, na parte em que estabelece a proibição de a apelante de possuir cão como animal doméstico na fracção locada.
    É claro que, neste conspecto, devem, desde logo, seguir-se as regras relativas à interpretação dos negócios jurídicos estatuídas no CCivil.
    Ora, nos termos do artigo 236.º do referido diploma a declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele, sendo que, dado estarmos perante um negócio formal (artigo 1069.º do CCivil) a declaração não pode valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento, ainda que imperfeitamente expresso e esse sentido só valerá se corresponder à vontade real das partes e as razões determinantes da exigência de forma se não opuserem a essa validade (artigo 238.º, n.ºs 1 e 2 do CCivil).
    Lançando mão destas regras interpretativas resulta evidente que a vontade do senhorio foi, efectivamente, não permitir no locado a existência de animais domésticos, proibição com a qual a apelante se conformou ao celebrar o contrato.
    Acontece que, aos tribunais cabe a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos (cfr. artigo 202.º, n.º 2, Constituição da Republica Portuguesa).
    Ora, uma das formas de concretização deste dever dos tribunais é através da determinação e direcção das decisões jurisdicionais pelos direitos fundamentais materiais.[14]
    A norma jurídica constitucional só adquire verdadeira normatividade quando se transforma em norma de decisão aplicável a casos concretos, cabendo ao juiz, como agente do processo de concretização, um elemento fundamental, sendo que, um dos princípios que devem orientar o juiz é o princípio da máxima efectividade: a uma norma constitucional deve ser atribuído o sentido que maior eficácia lhe dê.[15]
    O juiz, ao interpretar um contrato, e ao decidir da sua conformidade com a lei, não pode esquecer a lei constitucional.
    Uma proibição, validamente estabelecida num contrato de arrendamento, segundo a lei civil, pode apresentar-se, materialmente, como violadora de direitos fundamentais do arrendatário.
    Imaginemos como refere Sandra Passinhas[16] que num determinado edifício, o título constitutivo da propriedade horizontal ou o regulamento de condomínio proíbe ter animais nas fracções autónomas. Se um dos futuros condóminos tiver um filho autista, para cujo desenvolvimento é essencial a companhia de um cão, ou for um invisual que necessite de ter um cão-guia, esta disposição do título ter-se-á por não aplicável.
    É claro que, a normatividade constitucional não é o único critério a ter em conta na interpretação dos negócios jurídicos; a doutrina e a jurisprudência socorrem-se ainda dos referentes sistemáticos do direito civil.
    Ora, ainda que estabelecida no título, é opinião corrente que a proibição genérica de deter animais não deve ser interpretada à letra, antes deve ter em conta o concreto distúrbio provocado, segundo o substrato valorativo e os limites protectores das normas da vizinhança e da tutela da personalidade.
    Como refere Sandra Passinhas[18] “A concretização de uma proibição genérica de detenção de animais numa fracção autónoma ou no locado deve ponderar sempre a existência de um concreto prejuízo do interesse colectivo do condomínio, do senhorio e respectivos vizinhos, sob o duplo aspecto da perturbação do sossego e higiene públicos, ou, no mínimo, levar a uma investigação cuidada dos objectivos a que as partes se propuseram com a cláusula proibitória: se pretenderam evitar tout court a detenção de animais ou se pretenderam evitar os prejuízos que a presença de animais no edifício pode causar.
    Neste sentido, é pacificamente aceite que as cláusulas gerais que proíbem a detenção de animais não abrangem os pequenos animais, como peixes, ratos, hamsters e pequenas aves, porque não são susceptíveis de causar qualquer incómodo aos condóminos vizinhos. E no que respeita a animais que possam causar distúrbios, como cães, gatos ou aves, a proibição deverá ter necessariamente em conta o concreto prejuízo a que esses animais dão origem”.
    Mas para além daqueles das normas da vizinhança e da tutela da personalidade podem ainda existir casos especiais de valoração.
    Efectivamente, quando existe necessidade de se valorar, num caso concreto, um conflito entre a faculdade de deter animais numa fracção autónoma ou num locado e o direito de propriedade do senhorio ou de personalidade deste ou de outros condóminos, não se pode deixar de atender ainda ao valor específico que um animal de companhia tem para o seu dono, e que pode ser, inclusive, constituinte da sua personalidade.
    Na verdade, os animais, ainda que considerados pelo nosso ordenamento jurídico como coisas (nos termos do artigo 202.º, n.º 1 do CCivil), fazem parte daquele tipo de propriedade a que tradicionalmente se chama propriedade pessoal, ou seja, propriedade de certos bens que estão ligados à auto-construção da personalidade.
    De facto, como observa Sandra Passinhas[19] “Muitas pessoas detêm objectos que sentem como se fossem quase parte delas próprias; estas coisas estão ligadas profundamente à sua própria personalidade porque são o meio através do qual se constroem continuamente enquanto entidades no mundo. O critério para avaliar o significado da relação de alguém com um objecto é o do tipo de dano ou sofrimento que a sua perda causa. Neste sentido, um objecto está relacionado com a construção da personalidade de uma pessoa se a sua perda causa um dano que não pode ser reparado pela sua substituição. O oposto de ter um objecto que se torna parte da própria pessoa é ter um bem perfeitamente fungível por outro de igual valor de mercado; estes objectos têm um valor meramente instrumental para a auto-constituição pessoal”.
    Ora, neste quadro conceptual, os animais de companhia, enquanto propriedade, são constitutivos da personalidade de cada indivíduo.
    Citando novamente Sandra Passinhas[20] “Os animais enriquecem as nossas vidas, têm um efeito positivo no comportamento e na saúde humanos, podem melhorar os ânimos e exercer uma influência importante nas crianças, nos idosos e nos deficientes. As pessoas que, por sofrerem de doenças graves ou pela idade, estão confinadas às suas casas, retiram um benefício terapêutico, mesmo espiritual, da presença de um animal. Àqueles que vivem sozinhos, os animais oferecem consolo e muitas vezes até uma razão para viverem. As crianças aprendem o valor da responsabilidade e da disciplina, desenvolvendo um sentido de protecção e de generosidade. Aos adultos, um animal em casa pode ainda ser uma fonte de segurança”.
    Portanto, na sua actividade valorativa e coordenadora, o juiz tem de atender ao valor pessoalmente constitutivo que o animal possa ter para o seu dono[21], por exemplo para uma pessoa que viva sozinha ou mesmo o trauma psicológico que pode causar a perda de um animal.
    Postos estes considerandos, desçamos novamente ao caso concreto dos autos.
    No que tange aos concretos prejuízos e distúrbios que o canídeo em causa possa causar quer à apelada quer aos restantes vizinhos moradores do prédio em que se insere o locado, verifica-se que apenas ficou provado que:
    a)- O animal ladra, corre, faz ruído;
    b)- O canídeo de nome “H… é da raça …, sendo que, os cães da referida raça são conhecidos por serem sociáveis, e serem poucos latidores.
    Portanto, sobe este conspecto não ficou provado como a Autora havia alegado que:
    a)- O canídeo era de grande porte e de raça aparentemente proibida;
    b)- Intimida e incomoda os habitantes do prédio e as pessoas que lá se deslocam;
    c)- A falta de limpeza por parte da aqui Ré C… é de tal forma notória, que os vizinhos falam mesmo de um ambiente propício à existência de ratos e demais animais e consequentemente ambiente que coloca em risco a saúde pública;
    d)- O latir do canídeo dia e noite, os maus cheiros causados pelo local inadequado onde está instalado e a poluição do ar são condições suficientes para colocar em risco tanto a higiene, como o sossego, daqueles que habitam no prédio descrito no item 1 desta peça processual, como nos demais prédios confinantes.
    Decorre, pois, do citado quadro factual que o canídeo não é fonte de qualquer prejuízo para o sossego, a salubridade ou a segurança da apelada ou dos restantes moradores do prédio, diga-se, aliás, a raça em causa (…) é conhecida por ser dócil e muito sociável quer em relação aos respectivo donos quer em relação a qualquer estranho.[22]
    Mas para além de o “H…” não constituir fonte de prejuízo e desassossego, importa, neste caso concreto, atender sobretudo ao valor pessoal constitutivo que ele tem para a família da apelante e, mais concretamente, para o seu filho I….
    Com efeito, resulta dos factos assentes que “O canídeo reveste importância no seio da família e no bom desenvolvimento do I…, que tem perturbações de ansiedade”.
    Como assim e ainda, como supra se referiu, que no actual quadro terminológico do direito português os animais sejam considerados coisas, neste caso concreto e em sede de valoração, importa dar prevalência ao valor pessoalmente constitutivo que a detenção do “H…” tem para os seus donos em detrimento do direito de propriedade que o senhorio tem sobre o locado e da sua vontade de que dele não usufrua um animal doméstico.
    Na realidade, a habitação é um espaço de convívio e nesse convívio os animais participam não como coisas mas como conviventes e, como não pode deixar de ser, de acordo com as regras da sã convivência, entre conviventes é necessário suportar os pequenos incómodos causados pelos outros.
    Como assim, não obstante constar de proibição expressa a existência de um canídeo no locado, a referida cláusula deve considerar-se não escrita quando se prova que ele tem, neste caso, valor pessoalmente constitutivo para a vida familiar e essencialmente para o filho da apelante e não se prova, por outra banda, que ele cause qualquer prejuízo para o sossego, a salubridade ou a segurança dos restantes moradores e da Autora apelada.
    Por esta razão não existindo incumprimento contratual também não existe fundamento para que a apelada seja compelida à retirada do canídeo do locado.
    Evidentemente que isto não significa que a mesma cláusula se não mantenha actuante quando, por exemplo, no futuro se venha alterar o quadro factual actualmente existente.
    *
    Procedem desta forma, as conclusões K) a AA) formuladas pela apelante e, com elas, o respectivo recurso.
    *
    IV-DECISÃO

Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação interposta procedente por provada e, consequentemente, revogar a decisão recorrida na parte em que condenou a Ré a retirar o cão do locado, absolvendo-a, assim, desse pedido.

Custas da apelação pela Autora apelada (artigo 527.º nº 1 do C.P.Civil).

Porto, 21 de Novembro de 2016.
Manuel Domingos Fernandes
Miguel Baldaia de Morais
Jorge Seabra

3091/15.6T8GDM.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MANUEL DOMINGOS FERNANDES
Descritores: CONTRATO DE ARRENDAMENTO PARA HABITAÇÃO
INTERPRETAÇÃO
PROIBIÇÃO DE CÃES NO LOCADO
JUNÇÃO DE DOCUMENTOS
REAPRECIAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO

RP201611213091/15.6T8GDM.P1
Data do Acordão: 11/21/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1

Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º 637, FLS. 28-42)

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