Autor: Pinheiro

  • Licença de Utilização. O que é? (Autorização de utilização)

    Licença de Utilização. O que é? (Autorização de utilização)

    Licença de Utilização | Autorização de utilização

    ​A autorização de utilização (ou licença de utilização) é um procedimento sujeito a controlo prévio de autorização, com objetivo à obtenção do respetivo alvará de utilização e deve ser requerida após a conclusão da obra e previamente à utilização do edifício / fração / espaço.

    A licença utilização de edifícios ou suas frações é necessária para verificar a conformidade da obra concluída com o projeto de arquitetura, especialidades e arranjos exteriores aprovados e com as condições do licenciamento ou da comunicação prévia.

    O referido documento é emitido pela Câmara Municipal do concelho onde se situa o imóvel.

    A apresentação da licença de utilização não é obrigatória nos seguintes casos:

    • prédios construídos antes de 7 de Agosto de 1951 (Decreto-Lei n.º 38.382 – Regulamento Geral das Edificações Urbanas);
    • espaços não habitáveis ou não utilizáveis para comércio, indústria ou serviços.

    As licenças de utilização podem ser para utilizações genéricas (habitação, comércio ou serviços) ou para utilizações específicas (farmácias, restauração, cabeleireiros e salões de estética, hospitais, dentre outros).

    Em regra, a Câmara Municipal, após confirmar que o pedido está bem instruído, providencia os pareceres / vistorias necessários.

    Adriano Martins Pinheiro é advogado, formador e escritor

    Leia nossos outros artigos:

    Certidão do registo predial: análise indispensável na compra e venda de imóveis

    A importância da segurança e agilidade para os consultores imobiliários

    Compra e Venda de Imóvel em Portugal | Contrato, Documentos e Impostos

    Licença de utilização: documento indispensável na compra e venda de imóveis

    Análise preventiva de documentos para uma negociação imobiliária segura

    Escritura pública na compra e venda de imóvel

    Contra Promessa de Compra e Venda (CPCV)

    Caderneta Predial e Certidão do Registo Predial , de acordo com o Código do Notariado

    tags: licença de utilização, autorização de utilização, câmara vila nova de gaia, câmara porto, imóvel, apartamento, afetação, casa, habitação, formulário, projeto, arquitetura,

  • Animal de estimação continua em imóvel arrendado. Justiça favoreceu inquilino

    Animal de estimação continua em imóvel arrendado. Justiça favoreceu inquilino

    O Tribunal decidiu favoravelmente a um arrendatário (inquilino), para que ele pudesse manter um animal de estimação no apartamento arrendado. Havia no contrato uma cláusula que proibia a posse de animais no imóvel, mas a referida cláusula foi considerada nula.

    Para o tribunal, era necessário o senhorio provar que o animal gerava prejuízo para o sossego, a salubridade ou a segurança dos restantes moradores. Além disso, o animal de estimação tinha grande importância no seio da família e no bom desenvolvimento de um filho que tem perturbações de ansiedade.

    Transcreve abaixo o sumário da decisão (número V e VI):

    V- Os animais, não obstante considerados pelo nosso ordenamento jurídico como coisas (nos termos do artigo 202.º, n.º 1), fazem parte daquele tipo de propriedade a que tradicionalmente se chama propriedade pessoal, ou seja, propriedade de certos bens que estão ligados à auto-construção da personalidade, razão pela qual na sua actividade valorativa e coordenadora, o juiz tem de atender ao valor pessoalmente constitutivo que o animal possa ter para o seu dono.

    VI- Por essa razão não deve o arrendatário pese embora a existência de cláusula contratual proibitiva, ser compelido à retirada de um canídeo do locado quando se prove que, além de não ser fonte de qualquer prejuízo para o sossego, a salubridade ou a segurança dos restantes moradores e do locador, reveste importância no seio da família e no bom desenvolvimento de um filho que tem perturbações de ansiedade devendo, nestes casos, a referida cláusula considerar-se não escrita.

    O acórdão está transcrito na íntegra, logo abaixo.

    Adriano Martins Pinheiro, advogado em Portugal

    https://advocaciapinheiro.com/

    Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
    Processo nº 3091/15.6T8GDM.P1-Apelação
    Origem: Comarca do Porto-Gondomar-Inst. Local-Secção Cível-J3
    Relator: Manuel Fernandes
    1º Adjunto Des. Miguel Baldaia
    2º Adjunto Des. Jorge Seabra

    Sumário:

    I- A junção de documentos na fase de recurso estribada na circunstância de ela se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1ª instância (artigo 651.º, nº 1 do CPCivil), pressupõe a novidade da questão decisória justificativa da junção pretendida, como questão operante (apta a modificar o julgamento) só revelada pela decisão, sendo que isso exclui que a decisão se tenha limitado a considerar o que o processo já desde o início revelava ser o thema decidendum.

    II- Na reapreciação da prova a Relação goza da mesma amplitude de poderes da 1.ª instância e, tendo como desiderato garantir um segundo grau de jurisdição relativamente à matéria de facto impugnada, deve formar a sua própria convicção.

    III- O juiz, ao interpretar um contrato, e ao decidir da sua conformidade com a lei, não pode esquecer a lei constitucional, uma proibição, validamente estabelecida num contrato de arrendamento, segundo a lei civil, pode apresentar-se, materialmente, como violadora de direitos fundamentais do arrendatário.

    IV- Ainda que estabelecida em contrato é opinião corrente que a proibição genérica de deter animais não deve ser interpretada à letra, antes deve ter em conta o concreto distúrbio provocado, segundo o substrato valorativo e os limites protectores das normas da vizinhança e da tutela da personalidade.

    V- Os animais, não obstante considerados pelo nosso ordenamento jurídico como coisas (nos termos do artigo 202.º, n.º 1), fazem parte daquele tipo de propriedade a que tradicionalmente se chama propriedade pessoal, ou seja, propriedade de certos bens que estão ligados à auto-construção da personalidade, razão pela qual na sua actividade valorativa e coordenadora, o juiz tem de atender ao valor pessoalmente constitutivo que o animal possa ter para o seu dono.

    VI- Por essa razão não deve o arrendatário pese embora a existência de cláusula contratual proibitiva, ser compelido à retirada de um canídeo do locado quando se prove que, além de não ser fonte de qualquer prejuízo para o sossego, a salubridade ou a segurança dos restantes moradores e do locador, reveste importância no seio da família e no bom desenvolvimento de um filho que tem perturbações de ansiedade devendo, nestes casos, a referida cláusula considerar-se não escrita.

    I-RELATÓRIO

    Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

    B…, residente no … nº .. casa ., na União das freguesias de …, … e … no município de Gondomar intentou a presente acção de despejo sob a forma de processo comum contra C…, D… e E… residentes na Rua … n º .., na União das freguesias de …, … e …, no município de Gondomar, pedindo que seja decretada a resolução do contrato de arrendamento habitacional e decretado o despejo imediato da ré do locado com a sua entrega livre de pessoas e bens, com base no incumprimento da ré; decretada a resolução do contrato de arrendamento habitacional, com base na violação das regras de higiene, de sossego, de boa vizinhança ou de normas constantes do regulamento do condomínio e decretado o despejo imediato da Ré C… do locado, livre de pessoas e bens; sem prescindir, caso se entenda que não há razão legal para a resolução do contrato, que seja decretada a retirada imediato do cão do locado; todos Réus serem condenados a pagar à autora, título de indemnização, num valor de €7,5/dia, desde a sua citação até à retirada do cão, relegando-se para execução de sentença o apuramento do seu valor global.
    *
    Os Réus contestaram invocando que o direito da Autora caducou, pois a Ré já possui um canídeo desde 2006, com conhecimento dos senhorios, mais impugnando, parcialmente, a matéria de facto.
    *
    A Autora respondeu impugnando os factos atinentes à caducidade. *
    Foi proferido despacho saneador onde se julgou improcedente a excepção da ilegitimidade relativamente ao segundos Réus e se relegou, para momento posterior, o conhecimento e decisão relativa à excepção da caducidade.
    *
    O processo correu a sua tramitação normal e, tendo tido lugar a audiência de discussão e julgamento foi, a final, proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente e consequentemente condenou a Ré a retirar o cão do locado absolvendo-os quanto ao demais peticionado.
    *
    Não se conformando com o assim decidido veio a Ré C… interpor o presente recurso concluindo as suas alegações pela forma seguinte:
    A- Os factos dados como não provada nos pontos 5.º ao 12º da sentença, deveriam ter sido dados como provados, atentas as declarações das testemunhas e o documento que se junta que segundo o Tribunal a quo seria elemento essencial para tais factos serem dados como provados;
    B- Não existiu contradição entre as testemunhas da Autora e as da Demandada, posto que a:
    C- Testemunha da Autora E…: do minuto 10:28 10:52 em sínteses refere que há 10 anos que a Demandada teve um cão;
    D- Efectivamente esta testemunha confirma a existência de canídeo, não sabe por quanto tempo.
    E- A única testemunha da Autora que não conheceu outro cão anteriormente foi o Sr. F…, que contudo não foi peremptório no seu discurso, pois como conta da sentença refere “que tivesse visto, ela só teve este cão”
    F- conforme se constata não existiu contradição, posto que uma das testemunhas da autora refere a existência do canídeo, a outra não sabe e as quatro testemunhas da ré, cujo depoimento não foi posto em crise sendo pois considerada a sua idoneidade, aliás na sentença reproduzem-se as suas declarações, não se entende porque razão não se dão como provados os factos que comprovam a permanência da “G…” no locado em que reside a demandada.
    G- Por outro lado alega o Tribunal a quo que não foi junto qualquer suporte documental que provasse que aquele animal pertencesse à Demandada. Na verdade não foi junto o registo de caninos, contudo analisando tais factos dentro da razoabilidade, a ausência de registo é perfeitamente aceitável, dado que segundo as testemunhas a cadela “G…”, terá sido acolhida em 2006, era uma cadela abandonada, rafeira, a legislação relativa ao registo dos caninos havia sido publicada pela primeira vez em 2003, ou seja tinha pouco tempo e a maioria das pessoas desconhecia esta obrigação, para além de que em regra nessa altura o que usualmente se verificava era que quem recorria ao registo eram as pessoas que compravam os canídeos e tinham atestada a sua raça e lhes colocavam o ship.
    H- Por outro lado, foram juntas fotografias a fls. 9 e 10 do canídeo, e só não foram juntas acompanhadas dos filhos, porque se entendeu que se devia preservar a imagem das crianças, contudo tais fotografias existem conforme se demonstra com a junção da mesma às presentes alegações, nos termos do disposto no art.º 651º do C.P.C., já que tal junção só se revelou importante em virtude do julgamento e da posição assumida na sentença.
    I- Devem ser considerados como provados os factos alegados pela Demandada nos artigos 3º ao 5.º e 18º ao 22º da contestação, alterando-se por consequência a fundamentação dada na sentença.
    J- os senhorios não denunciando o contrato como o poderiam ter feito, já que se trata de contrato de duração limitada outorgado em 2004 e abstendo-se de qualquer procedimento legal nesse sentido, não obstante as sucessivas renovações contratuais, ao exercerem neste momento tal direito em violação do direito de propriedade, traduzido na posse de um animal de companhia, o cão, traduz o exercício ilegítimo de um direito, por aplicabilidade da figura do abuso de direito, art.º 334º do C.C.
    K- Sem prescindir, caso assim não se entenda;
    L- O Tribunal ao quo, condenou a Demandada a retirar o cão do locado, por considerar que a ré se mantém em incumprimento de uma cláusula do contrato de arrendamento, que refere “Fica o 2.º outorgante impedido de possuir cão como animal doméstico”.
    M- A decisão de que se recorre, exigia uma fundamentação mais cuidada e a ponderação das circunstâncias que envolvem o presente caso posto que estamos perante um ser vivo, que é tido como um elemento da família e não perante uma coisa que se abandona a qualquer momento, cuja orientação nacional em termos de fundamentação é a protecção do animais.
    N- Ficou provado, à contrário, que estamos perante um canídeo que não perturba, é meigo e não intimidante, late pouco, em síntese não estão em causa os direitos de personalidade da senhoria;
    O- Ou seja, in casu, estamos perante uma conflitualidade entre o direito de propriedade da Demandada, a posse do cão, e o direito ao cumprimento pontual do contrato da senhoria,
    P- Nos termos do art.º 335º n.º 2 do C.Civil, nestes casos deve-se optar pelo direito superior. Conforme supra se referiu o canídeo de nome “H…” não causa qualquer prejuízo à senhoria
    Q- Por outro lado, ficou provado que o canídeo reveste no seio desta família, de uma particular importância, posto que, se revela muito importante no desenvolvimento do I…, filho menor da Demandada que tem perturbações de ansiedade, conforme documento de fls. 68 (atestado médico) e declarações de J… e K…, conforme consta do 3.º parágrafo da sentença a fls. 7.
    R- Ora avaliando os valores que estão em conflito atendendo aos dados constantes dos autos, temos um animal de companhia que é propriedade da Demandada, que nos termos do disposto no art.º 1305º do C.Civil que tem direito a exercê-lo de modo pleno, exigindo que terceiros se abstenham de invadir ou interferir na sua esfera jurídica. Temos ainda que, tal direito está a ser exercido de forma equilibrada e moderada, sem ofender direitos de terceiros e muito menos os da senhoria que se move por instintos de vingança, posto que em Agosto de 2015 teve uma discussão com a Demandada por causa das bolas das crianças e anunciou que a Demandada se iria arrepender (minuto 27:17 do depoimento da E… e minuto 8:59 ao 10:12 do depoimento da J…
    S- Ora estes factos não são essenciais, mas são factos instrumentais, que foram discutidos em sede de audiência de julgamento, que em sede de decisão devem ser utilizados para formar a convicção, o que in casu, não sucedeu atenta a ausência total de análise crítica quanto a estes factos, art.º 552º n.º 1 al. d), à contrário e art.º 5º n.º 2 al. a) do CPC.
    T- O Tribunal a quo, deveria ter realizado uma avaliação concreta do circunstancialismo fáctico da situação específica, atendendo a princípios de proporcionalidade, adequação e razoabilidade, o que não fez.
    U- Deter um animal numa habitação, cai no âmbito da utilização normal do locado. Caso a caso tem que se ponderar o valor específico que o animal tem para com a família em que está integrado, posto que passa a fazer parte constituinte da personalidade do seu dono, enriquecem a sua vida, têm um benefício terapêutico, principalmente para as crianças que com estes animais aprendem o valor da responsabilidade, da disciplina, desenvolvem sentimentos de protecção e de generosidade.
    V- De acordo com a mais recente doutrina no âmbito dos condomínios, a Dr.ª Sandra Passinhas, na sua dissertação “Os animais e o regime da Propriedade horizontal”, a mesma refere que “os animais não participam no agregado familiar como coisas mas como conviventes”, e enfatiza a forma como na sociedade existe um crescente reconhecimento, do papel dos animais na realização pessoal do individuo e da sua importância como membros da colectividade familiar. Defendendo a ilegalidade das normas do regulamento que interferem no direito de propriedade dos condóminos.
    W- Ao Tribunal incumbe no âmbito do disposto no art.º 202.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa, dirimir os conflitos de interesses entre particulares e muitas vezes uma proibição validamente constituída no âmbito de um contrato, por força da lei civil pode apresentar-se como violadora de direitos fundamentais.
    X- Ora os animais enquanto coisas que são (art. 202º do CC), enquadram-se no âmbito do direito de propriedade e estão directamente ligados à auto-construção da personalidade, constituem um dos meios mediante o qual a pessoa se constrói no mundo, o critério para avaliar o valor dessa coisa no seio da família é o da ponderação do sofrimento que causará a esta família a sua perda.
    Y- Termos em que ponderados tais interesses se deve considerar que a cláusula inserida no contrato é nula, e face à colisão de valores jurídicos deve prevalecer o de maior valor, ou seja o direito de propriedade e a saúde do menor enquanto pessoa em desenvolvimento, nos termos do disposto no art.º 335º, 1305º, não obstante o consentimento tácito do lesado, caso se considerem provados os factos impugnados, nos termos do disposto no art.º 340º todos do C. Civil.
    Z- O Tribunal a quo violou os normativos do C. Civil 334º, 335º, 1305º e não cumpriu com os dispositivos que o obrigam a considerar os factos instrumentais e a fundamentar de forma critica a sentença nos termos do disposto no art.º 5º, art.º 607 n.º 4 e art.º 615 n.º 1 al. d) todos do CPC.
    AA- Termos em que a decisão proferido deve ser revogada e substituída por outra que considere nula a cláusula ínsita no contrato de arrendamento, que proíbe a Demandada a ter cão como animal de estimação, mantendo-se o canídeo no locado.
    *
    Devidamente notificada contra-alegou a Autora concluindo pelo não provimento do recurso.
    *
    Corridos os vistos legais cumpre decidir.
    *
    II- FUNDAMENTOS

    O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso-cfr. artigos 635.º, nº 4, e 639.º, nºs 1 e 2, do C.P.Civil.
    *
    No seguimento desta orientação são duas as questões que importa apreciar:
    a)- saber se o tribunal recorrido cometeu erro na apreciação da prova e assim na decisão da matéria de facto;
    b)- decidir em conformidade face à alteração, ou não, da matéria factual e, mesmo não se alterando esta, se a subsunção jurídica se encontra correctamente feita.
    *
    A)- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

    É a seguinte a matéria de facto que vem dada como provado pelo tribunal recorrido:
    A) É a aqui Autora a única dona e exclusiva proprietária, correspondente ao 1º Andar do prédio urbano sito no …, com entrada pelo n.º 71, casa 1, inscrito na respectiva matriz predial sob o art.º 14542, da competente matriz urbana da União das freguesias de …. (…), … e …, município de Gondomar (artigo 1.º da petição inicial–matéria assente).
    B) Tal prédio urbano adveio à propriedade da aqui Autora por partilha após óbito do seu marido, ocorrido a 30/09/2014, Gondomar (artigo 2.º da petição inicial–matéria assente).
    C) À data da transmissão da propriedade deste imóvel para a autora, vigorava um contrato de arrendamento celebrado por escrito em 01/05/2004 com os réus para o r/c andar do referido imóvel com entrada pelo n.º ..–casa . Gondomar (artigos 3.º e 4.º da petição inicial–matéria assente).
    D) Na posição de proprietários e senhorios constavam a autora e o seu falecido marido e na qualidade de arrendatária, a ré C… e na qualidade de fiadores os 2 ª Réus (artigo 5.º da petição inicial-matéria assente).
    E) A autora e falecido marido, como proprietários do citado andar do imóvel por contrato de arrendamento celebrado em 01/05/2004, pelo período de 5 anos, renovado por iguais períodos, deram de arrendamento à Ré C… a referida habitação, que esta tomou no termos e condições (artigo 6.º da petição inicial–matéria assente).
    F) Na cláusula décima terceira do contrato de arrendamento é expressamente referido: “Fica o 2.º outorgante impedido de possuir cão como animal de doméstico” (artigo 10.º da petição inicial–matéria não impugnada) (v. doc. fls. 10).
    G) Pelo menos desde meados de Março de 2015 até à presente data, a inquilina, ré C… tem no interior da sua casa (artigo 11.º da petição inicial).
    H) O mesmo animal ladra, corre, faz ruído (artigo 13.º da petição inicial).
    I) A autora, por intermédio da sua mandatária, aqui signatária, remeteu em 02/09/2015 carta registada com aviso de recepção à ré, comunicando: “caso não proceda à retirada do cão da habitação até ao próximo dia 15 (…) será a nossa cliente obrigada a intentar (..) respectiva acção de despejo (…)” (artigo 15.º da petição inicial e doc. de fls. 28).
    J) Na data estipulada pela autora a ré não procedeu à retirada do animal, tal como lhe foi devidamente comunicado (artigo 16.º da petição inicial).
    L) A autora no dia 06/10/2015 participou à Delegação de Saúde, assim como, aos Serviços do Ambiente da Câmara Municipal … (artigo 17.º da petição inicial e doc. de fls. 30 e 31).
    M) O canídeo de nome “H…”, actualmente reside com o agregado familiar, na habitação que está arrendada pela ré (artigo 23.º da contestação).
    N) O canídeo, é da raça … (artigo 5.º da contestação).
    O) Os cães da referida raça são conhecidos por serem sociáveis, e ser pouco latidor (artigo 26.º da contestação)
    P) O canídeo reveste importância no seio da família e no bom desenvolvimento do I…, que tem perturbações de ansiedade (artigos 35.º e 36.º da contestação).
    *
    Factos não provados:

    1.º- Artigo 11.º da petição inicial “de grande porte e de raça aparentemente proibida”;
    2.º- Artigo 13.º da petição inicial–“intimida e incomoda os habitantes do prédio e as pessoas que lá se deslocam”;
    3.º- A falta de limpeza por parte da aqui Ré C… é de tal forma notória, que os vizinhos falam mesmo de um ambiente propício à existência de ratos e demais animais e consequentemente ambiente que coloca em risco a saúde pública (artigo 14.º da petição inicial);
    4.º- O latir do canídeo dia e noite, os maus cheiros causados pelo local inadequado onde está instalado e a poluição do ar são condições suficientes para colocar em risco tanto a higiene, como o sossego, daqueles que habitam no prédio descrito no item 1 desta peça processual, como nos demais prédios confinantes (artigo 25.º da petição inicial).
    5.º- A ré já possui canídeo desde, pelo menos o ano de 2006, com conhecimento, à data dos senhorios (artigo 3.º da contestação).
    6.º- Tratava-se de uma cadela, cujo nome era “G…”, sendo que conviveu durante pelo menos seis anos, no agregado familiar da ré, à vista dos senhorios e de todos quantos por ali passassem (artigo 4.º da contestação);
    7.º- Sendo que os senhorios inicialmente reclamaram e posteriormente consentiram, pelo menos de forma tácita na existência de canídeo no locado arrendado (artigo 5.º da contestação).
    8.º- Após o nascimento dos seus filhos em 2005 e 2006, a ré por questões associadas ao bom desenvolvimento dos filhos optou por adquirir uma cadela de nome “G…”; (artigo 18.º da contestação).
    9.º- Que viveu no seio familiar durante seis anos (artigo 19.º da contestação).
    10.º- À vista de todos e com conhecimento dos senhorios (artigo 20.º da contestação).
    11.º- O senhorio, inicialmente, quando avistou a cadela, suscitou a questão de não poder ter canídeos em casa e face à explicação de que era importante para o desenvolvimento dos meninos, principalmente para o I… que necessitava de ser estimulado (artigo 21.º da contestação).
    12.º- Estes acabaram por aceitar a presença da “G…” e nunca mais colocaram qualquer problema (artigo 22.º da contestação).
    *
    III. O DIREITO

    Questão prévia
    Na sua alegação requerem os apelantes a junção aos autos de um documento (fotografia) de que apenas agora tiveram conhecimento e que, por isso mesmo, não puderam em momento anterior carrear para o processo.
    Invocam os Autores, para sustentar a admissibilidade da junção deste documento nesta fase do processo, o disposto nos artigos 651.º n.º 1 e 425.º do Código de Processo Civil.
    Vejamos, então, se tal admissão se mostra possível.
    À questão da junção de documentos na fase de recurso se refere expressamente o artigo 651º, nº 1 do CPC, cujo teor ora se transcreve:
    Artigo 651.º
    Junção de documentos e de pareceres
    1-As partes apenas podem juntar documentos às alegações nas situações excepcionais a que se refere o artigo 425.º ou no caso da junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na primeira instância.
    E dispõe o artigo 425.º para o qual remete o texto da norma acabada de transcrever:
    Artigo 425.º
    Apresentação em momento posterior
    Depois do encerramento da discussão só são admitidos, no caso de recurso, os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento.
    E importará ter presente, enfim, enquanto norma contendo o “princípio geral” que referencia, na dinâmica do processo, o momento da apresentação de prova por documentos, o artigo 423.º do CPC:
    Artigo 423.º
    Momento da Apresentação
    1-Os documentos destinados a fazer prova dos fundamentos da acção ou da defesa devem ser apresentados com o articulado em que se aleguem os factos correspondentes.
    2-Se não forem juntos com o articulado respectivo, os documentos podem ser apresentados até 20 dias antes da data em que se realize a audiência final, mas a parte é condenada em multa, excepto se provar que os não pôde oferecer com o articulado.
    3-Após o limite temporal previsto no número anterior, só são admitidos os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento, bem como aqueles cuja apresentação se tenha tornado necessária em virtude de ocorrência posterior.
    Da concatenação destas normas decorre, que a junção de documentos em sede de recurso (junção que é positivamente considerada apenas a título excepcional) depende da caracterização (rectius, da alegação e da prova) pelo interessado nessa junção de uma de duas situações: (1) a impossibilidade de apresentação do documento anteriormente ao recurso, valendo aqui a remessa do artigo 651º, nº 1 para o artigo 425º; (2) o ter o julgamento da primeira instância introduzido na acção um elemento de novidade que torne necessária a consideração de prova documental adicional, que até aí-até ao julgamento em primeira instância-se mostrava desfasada do objecto da acção ou inútil relativamente a este.
    Os documentos em referência nos citados artigos são habitualmente designados de documentos supervenientes, sendo que, e a sua superveniência pode ser objectiva, nos casos em que o documento só foi produzido em momento posterior ao do encerramento da discussão ou subjectiva, quando o documento, apesar de já existir, só chegou ao conhecimento da parte depois desse momento.
    Como se sabe, a junção de documentos na instância de recurso obedece, como não poderia deixar de ser, a regras particularmente restritivas.
    Como supra se referiu, com as suas alegações do recurso, as partes só podem juntar documentos, objectiva ou subjectivamente, supervenientes, isto é, cuja apresentação foi impossível até à apresentação dessas alegações ou cuja junção se torne necessária em virtude do julgamento proferido na 1ª instância (artº 524 nºs 1 e 2 e 693-B, 1ª parte, do CPC).
    Todavia, esta faculdade não compreende o caso de a parte pretender oferecer um documento que poderia–e deveria–ter oferecido naquela instância.
    Com efeito, quando ocorra uma dessas situações, a parte que pretenda oferecer o documento deve, demonstrar a impossibilidade da junção do documento no momento normal, ou seja, alegando e demonstrando o carácter objectivo ou subjectivamente superveniente desse mesmo documento.
    Ora, no que concerne à superveniência subjectiva não basta invocar que só se teve conhecimento da existência do documento depois do encerramento da discussão em 1ª instância, pois que, dessa forma permitir-se-ia que fossem acolhidas todas as incúrias e imprevidências das partes.
    Portanto, a parte deve alegar e provar a impossibilidade da sua junção naquele momento e, como tal, que o desconhecimento da existência do documento não deriva de culpa sua.
    Efectivamente, a superveniência subjectiva pressupõe o desconhecimento não culposo da existência do documento, sendo que, em qualquer caso, a parte deve alegar e demonstrar que o desconhecimento do documento não ficou a dever-se uma negligência sua, já que só desse modo o documento pode ter-se por subjectivamente superveniente.[1]
    Sopesando, não basta alegar a superveniência subjectiva do documento, sendo ainda exigível à parte a prova quer do não conhecimento tempestivo do documento, quer da inimputabilidade a uma culpa própria da ignorância da existência dele.
    Todavia, só são atendíveis razões das quais resulte a impossibilidade daquela pessoa, num quadro de normal diligência referida aos seus interesses, ter tido conhecimento anterior da situação ou ter tido anteriormente conhecimento da existência do documento, pois que, como se refere no Ac. da RC de /11/2014[2] a “(…) a questão não é o que “não se sabe”, “porque não se sabe”- ninguém sabe aquilo que não teve a curiosidade ou o cuidado de averiguar-a questão é o que justificadamente alguém “não podia saber, mas veio a saber mais tarde” e só neste caso se fala em superveniência subjectiva.”
    Feitos estes breves considerandos importa, desde logo, dizer que não foi alegado pelos apelantes quer o carácter objectivo ou subjectivamente superveniente do documento em causa (fotografia), pois que, como resulta do teor das alegações esse mesmo documento já existia na posse dos apelantes e só não foi junto, no seu dizer, para preservar a imagem das crianças.
    Alegam, todavia, os apelantes que a sua junção se tornou necessária em virtude do julgamento proferido na 1ª instância nos termos estatuídos no artigo 651.º, nº 1 do CPCivil.
    O normativo em referência admite, efectivamente, no seu trecho final, a junção de documentos com as alegações de recurso nos casos em que o julgamento proferido em primeira instância torne necessária a consideração desse documento.
    Todavia, pressupõe esta situação, a novidade da questão decisória justificativa da junção pretendida, como questão operante (apta a modificar o julgamento) só revelada pela decisão, sendo que isso exclui que a decisão se tenha limitado a considerar o que o processo já desde o início revelava ser o thema decidendum.[3]
    Com efeito, como refere expressivamente António Santos Abrantes Geraldes[4], “[p]odem […] ser apresentados documentos quando a sua junção apenas se tenha revelado necessária por virtude do julgamento proferido, máxime quando este se revele de todo surpreendente relativamente ao que seria expectável em face dos elementos já constantes do processo” e mais à frente acrescenta[5] “A jurisprudência anterior sobre esta matéria não hesita em recusar a junção de documentos para provar factos que já antes da sentença a parte sabia estarem sujeitos a prova, não podendo servir de pretexto a mera surpresa quanto ao resultado”.
    A este propósito cita-se também o Ac. do STJ de 12/01/de 1994[6] onde, em considerações que se mantêm pertinentes mesmo na actual lei adjectiva, se refere que o legislador, na última parte do artigo 706.º do CPCiivl (equivalente ao actual art. 651.º), ao permitir às partes juntar documentos às alegações no caso de a junção apenas se tornar necessária em virtude do julgamento proferido na 1ª instância “quis cingir-se aos casos em que, pela fundamentação da sentença, ou pelo objecto da condenação, se tornou necessário provar factos com cuja relevância a parte não poderia razoavelmente contar antes de a decisão ser proferida, significando o advérbio “apenas”, inserto no segmento normativo em causa, que a junção só é possível se a necessidade era imprevisível antes de proferida a decisão em 1ª instância”.
    Assim, a junção de documentos às alegações de recurso só poderá ter lugar se a decisão da 1ª instância criar pela primeira vez a necessidade de junção de determinado documento, quer quando se baseie em meio probatório não oferecido pelas partes, quer quando se funde em regra de direito com cuja aplicação ou interpretação as partes não contavam.
    Ora, nada disso ocorre na situação sub judice, pois que, a existência de um outro cão no locado durante vários anos, diferente do que hoje aí se encontra, foram factos alegados pela recorrente na respectiva contestação e, portanto, sabia, tendo sido impugnados, estarem os mesmos carecidos de prova, sendo que, o tribunal recorrido na sua fundamentação apenas não os considerou provados. Para além disso, a decisão recorrida limitou-se a considerar o que o processo já desde o início revelava ser o thema decidendum.
    *
    Em consequência, recusa-se a junção do referido documento e consequentemente, ordena-se o seu desentranhamento, condenando-se a recorrente em multa que se fixa em 1 (uma) UC nos termos do artigo 543.º, nº 2 do CPC e do artigo 27.º, nº 1 e 3 do Regulamento das Custas Processuais.
    *
    Como supra se referiu a primeira questão que importa apreciar e decidir consiste em:

    a)- saber se o tribunal recorrido cometeu erro na apreciação da prova e assim na decisão da matéria de facto.
    Como resulta do corpo alegatório e das respectivas conclusões a Ré recorrente impugnou a decisão da matéria de facto tendo dado cumprimento aos ónus impostos pelo artigo 640.º, nº 1 als. a), b) e c) do CPCivil, pois que, faz referência aos concretos pontos da matéria de facto que considera incorrectamente julgados, indica os elementos probatórios que conduziriam à alteração daqueles pontos nos termos por ela propugnados, a decisão que no seu entender deveria sobre eles ter sido proferida e ainda as passagens da gravação em que se funda o recurso e que transcreveu [nº 2 al. a) do citado normativo].
    Cumpridos aqueles ónus e, portanto, nada obstando ao conhecimento do objecto de recurso nesse segmento, a Ré apelante não concorda com a decisão sobre a fundamentação factual relativa aos pontos 5º a 12º dos factos não provados os quais, em seu entender deveriam ter sido dados como provados.
    Quid iuris?
    O controlo de facto, em sede de recurso, tendo por base a gravação e/ou transcrição dos depoimentos prestados em audiência, não pode aniquilar (até pela própria natureza das coisas) a livre apreciação da prova do julgador, construída dialecticamente na base da imediação e da oralidade.
    Efectivamente, a garantia do duplo grau de jurisdição da matéria de facto não subverte o princípio da livre apreciação da prova (consagrado no artigo 607.º nº 5) que está deferido ao tribunal da 1ª instância, sendo que, na formação da convicção do julgador não intervêm apenas elementos racionalmente demonstráveis, já que podem entrar também elementos que em caso algum podem ser importados para a gravação vídeo ou áudio, pois que a valoração de um depoimento é algo absolutamente imperceptível na gravação/transcrição.[7]
    Ora, contrariamente ao que sucede no sistema da prova legal, em que a conclusão probatória é prefixada legalmente, no sistema da livre apreciação da prova, o julgador detém a liberdade de formar a sua convicção sobre os factos, objecto do julgamento, com base apenas no juízo que fundamenta no mérito objectivamente concreto do caso, na sua individualidade histórica, adquirido representativamente no processo.
    “O que é necessário e imprescindível é que, no seu livre exercício de convicção, o tribunal indique os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela sobre o julgamento do facto como provado ou não provado”.[8]
    De facto, a lei determina expressamente a exigência de objectivação, através da imposição da fundamentação da matéria de facto, devendo o tribunal analisar criticamente as provas e especificar os fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador (artigo 607.º, nº 4 do CPCivil).
    Todavia, na reapreciação dos meios de prova, a Relação procede a novo julgamento da matéria de facto impugnada, em busca da sua própria convicção, desta forma assegurando o duplo grau de jurisdição sobre essa mesma matéria, com a mesma amplitude de poderes da 1.ª instância.[9]
    Impõe-se-lhe, assim, que “analise criticamente as provas indicadas em fundamento da impugnação, quer a testemunhal, quer a documental, conjugando-as entre si, contextualizando-se, se necessário, no âmbito da demais prova disponível, de modo a formar a sua própria e autónoma convicção, que deve ser fundamentada”.[10]
    Importa, porém, não esquecer que, como atrás se referiu, se mantêm vigorantes os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova e guiando-se o julgamento humano por padrões de probabilidade e nunca de certeza absoluta, o uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto deve restringir-se aos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova disponíveis e aquela decisão, nos concretos pontos questionados.[11]
    Tendo presentes estes princípios orientadores, vejamos agora se assiste razão à Ré apelante, neste segmento recursório da impugnação da matéria de facto, nos termos por ela pretendidos.
    *
    Os factos dados como não provados pelo tribunal recorrido e objecto de impugnação tinham a seguinte redacção:
    5.º – A Ré já possui canídeo desde pelo menos o ano de 2006, com conhecimento, à data dos senhorios (artigo 3.º da contestação);
    6.º- Tratava-se de uma cadela, cujo nome era “G…”, sendo que conviveu durante pelo menos seis anos, no agregado familiar da Demandada, à vista dos senhorios e de todos quantos por ali passassem, (artigo 4.º da contestação);
    7.º- Sendo que os senhorios inicialmente reclamaram e posteriormente consentiram, pelo menos de forma tácita na existência de canídeo no locado arrendado (artigo 5.º da contestação);
    8.º Após o nascimento dos seus filhos em 2005 e 2006, por razões associadas ao bom desenvolvimento dos filhos optou por adquirir uma cadela de nome “G…” (artigo 18º.º da contestação);
    9.º Que viveu no seio familiar durante seis anos, (artigo 19.º da contestação);
    10.º À vista de todos e com conhecimento dos senhorios, (artigo 20.º da contestação);
    11.º O senhorio, inicialmente, quando avistou a cadela, suscitou a questão de não poder ter canídeos em casa e face á explicação de que era importante para o desenvolvimento dos meninos, principalmente para o I… que necessitava de ser estimulado (artigo 21.º da contestação).
    12.º Estes acabaram por aceitar a presença da “G…” e nunca mais colocaram qualquer problema (artigo 22.º da contestação).
    *
    Na fundamentação da decisão da matéria de facto o tribunal recorrido quanto à não prova deste quadro factual discorreu do seguinte modo:
    “Quanto à alegada existência e permanência de canídeo anterior, é de referir que as testemunhas E… e F… desconheciam a existência anterior de outro canídeo no local arrendado pela ré e a ré não juntou qualquer prova documental que tal animal lhe pertencesse e com ela vivesse (por exemplo, registo ou declaração para registo do canino, fotografia do canino no local arrendado ou na companhia de algum dos seus filhos).
    Assim, em face de tais discrepâncias quanto à prova testemunhal e na ausência de outro meio de prova considerei como não provado os artigos 5.º a 12.º dos factos não provados”.
    Refere a este respeito a recorrente que não existe qualquer contradição entre o depoimento das testemunhas arroladas pela Autora apelada e o depoimento das testemunhas que ela indicou.
    Tal asserção não se mostra, todavia, correcta.
    Com efeito, a testemunha E… refere que o padrinho (senhorio do locado e já falecido) lhe referiu que a inquilina levou um cão para o locado, mas que quando descobriu ele obrigou-a a retira-lo de lá.
    Por sua vez a testemunha F… referiu que, fosse do seu conhecimento, a apelante só teve o cão actual.
    Ora, concatenando estes depoimentos com os das testemunhas arroladas pela recorrente, como dizer-se que entre eles não existem discrepâncias?
    Repare-se que a testemunha E… o que afirma no seu depoimento é substancialmente diferente daquilo que as testemunhas da recorrente referem nos seus.
    Na verdade, as testemunhas da recorrente o que referem é que a apelante teve no locado, antes do actual, e durante vários anos um outro canídeo.
    Acontece que, esse facto não é corroborado no depoimento da testemunha E… e, muito menos, no depoimento da testemunha F….
    Diga-se, aliás, que a testemunha J…, confirmando embora a existência de um outro canídeo pertencente à recorrente há cerca de 10 anos, acaba por afirmar, não obstante não saber bem a história, que pensa que aquela o terá dado à mãe não sabendo, contudo, qual terá sido o motivo.
    Neste conspecto a própria testemunha K… sempre foi dizendo que o falecido senhorio não queria animal nenhum mas que depois se foi compondo.
    Por sua vez a testemunha M… além de ter dito no início do seu depoimento que vinha confirmar aquilo que lhe pediram, vem depois dizer que a apelante já tem o canídeo actual há cerda de 4 ou 5 anos, aliás, e quanto a este aspecto, a testemunha J… afirma também que o actual canídeo está com a apelante há mais de 3 anos, espaço temporal este que é contrariado pelo averbamento do mesmo em nome da apelante com data de 09/11/2015.
    Perante os citados depoimentos torna-se evidente que, com base neles, não se pode dar como provada a matéria dos pontos 5º a 12 dos factos não provados, sendo ainda de salientar que as testemunhas indicadas pela recorrente, sobre a referida matéria factual, limitaram-se a confirmar a existência de um outro canídeo, nada tendo referido quanto ao demais aí vertido.
    A este propósito, embora deslocado do segmento correcto (impugnação da matéria de facto) vem ainda a apelante dizer que o tribunal recorrido devia ter tomado em consideração os factos instrumentais relativos a um incidente que houve entre ela e a Autora por causa de “umas bolas” que o filho da apelante deixava cair para o pátio daquela.
    É certo que o artigo 5.º do CPCivil que define em sede de matéria de facto o que constitui o ónus de alegação das partes e como se delimitam os poderes de cognição do tribunal, refere no seu nº 2 que além dos factos articulados pelas partes, são ainda considerados pelo juiz: a) os factos instrumentais que resultem da instrução da causa.
    Ora, factos instrumentais são aqueles de cuja prova se pode inferir a demonstração dos correspondentes factos principais mediante presunção judicial, assumindo uma função probatória e não uma função de preenchimento e substanciação jurídico-material das pretensões e da defesa.
    Assim sendo, que factos essenciais podiam ser dados como provados com recurso aos factos instrumentais concernentes a esse incidente?
    Não se descortina quais, pois que o objecto do processo, o seu thema decidendum, nada tem que ver com qualquer questão das bolas e com a eventual ameaça feita pela Autora à recorrente.
    Como assim, não tendo os referidos factos instrumentais qualquer conteúdo útil, nos termos referidos, não tinha o tribunal que os ter tomado em consideração.
    *
    Improcedem, assim, as conclusões A) a J) formuladas pela recorrente.
    *
    Permanecendo inalterado o quadro factual dado como assente pelo tribunal recorrido a segunda questão que vem colocada no recurso prende-se com:

    b)- saber se a sua subsunção se mostra correctamente efectuada.

    Como emerge da decisão recorrida aí se entendeu que, não existindo embora fundamento para a resolução do contrato de arrendamento, a Ré ao manter no locado um canídeo está incumprir o contrato e, por assim ser, determinou a sua retirada desse espaço.
    A referida decisão entronca, como dela decorre, de ter sido estipulado no contrato de arrendamento cláusula que impedia a apelante de possuir cão como animal doméstico.
    Deste entendimento dissente a apelante dizendo, no essencial, que essa cláusula é nula, porque existindo colisão de direitos, deve prevalecer a saúde do seu filho menor por o canídeo revestir importância no seio da família e no bom desenvolvimento daquele que tem perturbações de ansiedade.
    Quid iuris?
    A primeira fonte das obrigações na sistematização da lei é constituída pelos contratos.
    O actual Código Civil português não define expressamente a figura do contrato ao contrário do que acontecia com o Código de 1867, onde no seu artigo 641.º se “definia o contrato como o acordo, por que duas ou mais pessoas transferem entre si algum direito, ou se sujeitam a alguma obrigação”.
    Apesar disso pode definir-se o contrato como sendo o acordo vinculativo de vontades, assente sobre duas ou mais declarações de vontade (oferta ou proposta, de um lado; aceitação, do outro), contrapostas mas perfeitamente harmonizáveis entre si, que visam estabelecer uma regulamentação unitária de interesses.[12]
    Mas mais que uma das fontes das obrigações, o contrato como negócio bilateral que é, pode considerar-se em certo sentido a fonte natural das relações de crédito, pois que é por vontade de ambos os titulares (através do acordo contratual) que o vínculo em princípio há-de ser constituído.
    Na nossa lei civil vigente, a maior parte do regime comum aos diferentes contratos, no que designadamente se refere à sua formação, capacidade dos contraentes, forma de declaração, perfeição do acordo, requisitos substanciais de validade, cláusulas acessórias etc. é fixada na parte geral, dentro do capítulo que tem por objecto o negócio jurídico (artigos 217.º e seguintes do C.Civil).
    Acontece que à teoria geral das obrigações interessa apenas os efeitos do contrato como fonte de relações jurídicas creditórias, e esse aspecto importante da vida dos contratos desdobra-o a lei em duas partes: numa delas estabelece a disciplina de cada um dos vários contratos em especial (contratos típicos ou nominados) que, sendo as espécies mais correntes no comércio jurídico servem de padrão ou modelo na grande massa das operações negociais (artigos 874.º a 1250.º do C.Civil) na outra que vai do artigo 405.º ao artigo 456.º, traça uma espécie de teoria geral do contrato, com as regras aplicáveis, em princípio não só aos contratos em especial regulados na lei, mas a quaisquer outros contratos celebrados pelas partes.
    Os princípios fundamentais em que assenta toda a disciplina legislativa dos contratos são o princípio da autonomia privada que atribui aos contraentes o poderem de fixarem, em termos vinculativos a disciplina que mais convém aos seus próprios interesses; o princípio da confiança segundo o qual cada contraente deve responder pelas expectativas que justificadamente cria, com a sua declaração, no espírito da contraparte; e o princípio da justiça comutativa segundo o qual nos contratos onerosos à prestação de cada um dos contraentes deve corresponder uma prestação de valor equivalente da parte do outro contraente.
    O princípio da autonomia privada reveste, na área específica dos negócios bilaterais ou plurilaterais, a forma de liberdade contratual.
    Ora, o princípio basilar que serve de introdução à teoria dos contratos é, efectivamente, o da liberdade contratual descrito no artigo 405.º do C.Civil. Trata-se da faculdade que as partes têm de, dentro dos limites da lei, fixar livremente o conteúdo dos contratos, celebrar contratos diferentes dos prescritos no Código ou incluir neles as cláusulas que entendam.
    Antes, porém, da liberdade de fixação do conteúdo do contrato está implicitamente consagrada no referido normativo legal a liberdade de contratar, que como o próprio nome indica consiste na faculdade reconhecida às pessoas de criarem livremente entre si acordos destinados a regular os seus interesses recíprocos.
    Por outro lado, a liberdade reconhecida às partes aponta à criação do contrato, e o contrato é um instrumento jurídico vinculativo, é um acto com força obrigatória, e digamos assim a lex contractus. Portanto, liberdade de contratar é por conseguinte a faculdade de criar um instrumento objectivo, um pacto que, uma vez concluído, nega a cada uma das partes a possibilidade de se afastar (unilateralmente) dele-pacta sunt servanda-na medida em que a promessa livremente aceita por cada uma das partes a possibilidade cria expectativas fundadas junto da outra e acordo realiza fins dignos da tutela do direito.
    Ora, foi dentro desta liberdade contratual que entre as partes foi celebrado o contrato de arrendamento a que se refere a alínea E) da fundamentação factual e onde se estipulou na cláusula décima terceira o seguinte:
    “Fica o 2.º outorgante impedido de possuir cão como animal doméstico”.
    Portanto, de acordo com a referida cláusula, a apelante estava impedida de possuir no locado um cão como animal doméstico.
    Acontece que, tal como decorrente da alínea G) da fundamentação factual, pelo menos desde meados de Março de 2015 até à presente data, a apelante tem no interior do locado um cão.
    A questão que agora se coloca é se, apesar de tal cláusula contratual, a apelante pode, ou não, ter no locado o canídeo em causa.
    A proibição de deter animais de companhia numa fracção autónoma pode ser estabelecida no título constitutivo da propriedade horizontal ou no regulamento do condomínio aí inserido, pode ser acordada pelos condóminos entre si e pode, numa relação locatícia, ser acordada entre as partes.
    No caso sub judice, como já supra se referiu, essa proibição foi estabelecida pelas partes no contrato de arrendamento que entre elas celebraram.
    Importa, porém, antes de prosseguirmos a nossa análise sobre o caso concreto, referir que a detenção de um animal numa fracção autónoma tem também algumas limitações de ordem pública.
    Efectivamente, o Decreto-Lei n.º 276/2001, de 17 de Outubro[13], que estabelece as normas tendentes a pôr em aplicação a Convenção Europeia para a Protecção dos Animais de Companhia, considera animais de companhia aqueles detidos ou destinados a serem detidos pelo homem, designadamente no seu lar, para entretenimento e companhia. Por detentor, o artigo 2.º, alínea v), considera qualquer pessoa, singular ou colectiva, responsável pelos animais de companhia para efeitos de reprodução, criação, manutenção, acomodação ou utilização, com ou sem fins comerciais.
    Nos termos do artigo 6.º, do citado diploma incumbe ao detentor do animal o dever especial de o cuidar, de forma a não pôr em causa os parâmetros de bem-estar, bem como o de o vigiar, de forma a evitar que este ponha em risco a vida ou a integridade física de outras pessoas e animais e o artigo 8.º estabelece que os animais devem dispor do espaço adequado às suas necessidades fisiológicas e etológicas e o artigo 15.º determina que os alojamentos devem assegurar que as espécies animais neles mantidas não possam causar quaisquer riscos para a saúde e para a segurança de pessoas, outros animais e bens.
    Por sua vez o Decreto-Lei n.º 314/2003, de 17 de Dezembro, que aprova o Programa Nacional de Luta e Vigilância Epidemiológica da Raiva e Outras Zoonoses, estabelece no seu artigo 3.º que:

    1. O alojamento de cães e gatos em prédios urbanos, rústicos ou mistos, fica sempre condicionado à existência de boas condições do mesmo e à ausência de riscos higío-sanitários relativamente à conspurcação ambiental e doenças transmissíveis ao homem.
    2. Nos prédios urbanos podem ser alojados até três cães ou quatro gatos adultos por cada fogo, não podendo no total ser excedido o número de quatro animais, excepto se, a pedido do detentor, e mediante parecer vinculativo do médico veterinário municipal e do delegado de saúde, for autorizado alojamento até ao máximo de seis animais adultos, desde que se verifiquem todos os requisitos higío-sanitários e de bem-estar animal legalmente exigidos.
    3. No caso de fracções autónomas em regime de propriedade horizontal, o regulamento do condomínio pode estabelecer um limite de animais inferior ao previsto no número inferior”.
      Evidentemente que os números estabelecidos por este diploma devem ser interpretados de acordo com o âmbito de protecção das normas aí estabelecidas: a luta conta as zoonoses transmissíveis pelos carnívoros domésticos, ou seja, este Decreto-Lei não pretende modificar o regime jurídico das relações de vizinhança ou do próprio conteúdo do direito de propriedade sobre uma fracção autónoma, estabelecendo, sem mais, a proibição de deter mais de três cães, quatro gatos ou quatro animais por fracção autónoma.
      Feito este parêntesis, analisemos agora a interpretação a dar ao contrato celebrado, na parte em que estabelece a proibição de a apelante de possuir cão como animal doméstico na fracção locada.
      É claro que, neste conspecto, devem, desde logo, seguir-se as regras relativas à interpretação dos negócios jurídicos estatuídas no CCivil.
      Ora, nos termos do artigo 236.º do referido diploma a declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele, sendo que, dado estarmos perante um negócio formal (artigo 1069.º do CCivil) a declaração não pode valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento, ainda que imperfeitamente expresso e esse sentido só valerá se corresponder à vontade real das partes e as razões determinantes da exigência de forma se não opuserem a essa validade (artigo 238.º, n.ºs 1 e 2 do CCivil).
      Lançando mão destas regras interpretativas resulta evidente que a vontade do senhorio foi, efectivamente, não permitir no locado a existência de animais domésticos, proibição com a qual a apelante se conformou ao celebrar o contrato.
      Acontece que, aos tribunais cabe a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos (cfr. artigo 202.º, n.º 2, Constituição da Republica Portuguesa).
      Ora, uma das formas de concretização deste dever dos tribunais é através da determinação e direcção das decisões jurisdicionais pelos direitos fundamentais materiais.[14]
      A norma jurídica constitucional só adquire verdadeira normatividade quando se transforma em norma de decisão aplicável a casos concretos, cabendo ao juiz, como agente do processo de concretização, um elemento fundamental, sendo que, um dos princípios que devem orientar o juiz é o princípio da máxima efectividade: a uma norma constitucional deve ser atribuído o sentido que maior eficácia lhe dê.[15]
      O juiz, ao interpretar um contrato, e ao decidir da sua conformidade com a lei, não pode esquecer a lei constitucional.
      Uma proibição, validamente estabelecida num contrato de arrendamento, segundo a lei civil, pode apresentar-se, materialmente, como violadora de direitos fundamentais do arrendatário.
      Imaginemos como refere Sandra Passinhas[16] que num determinado edifício, o título constitutivo da propriedade horizontal ou o regulamento de condomínio proíbe ter animais nas fracções autónomas. Se um dos futuros condóminos tiver um filho autista, para cujo desenvolvimento é essencial a companhia de um cão, ou for um invisual que necessite de ter um cão-guia, esta disposição do título ter-se-á por não aplicável.
      É claro que, a normatividade constitucional não é o único critério a ter em conta na interpretação dos negócios jurídicos; a doutrina e a jurisprudência socorrem-se ainda dos referentes sistemáticos do direito civil.
      Ora, ainda que estabelecida no título, é opinião corrente que a proibição genérica de deter animais não deve ser interpretada à letra, antes deve ter em conta o concreto distúrbio provocado, segundo o substrato valorativo e os limites protectores das normas da vizinhança e da tutela da personalidade.
      Como refere Sandra Passinhas[18] “A concretização de uma proibição genérica de detenção de animais numa fracção autónoma ou no locado deve ponderar sempre a existência de um concreto prejuízo do interesse colectivo do condomínio, do senhorio e respectivos vizinhos, sob o duplo aspecto da perturbação do sossego e higiene públicos, ou, no mínimo, levar a uma investigação cuidada dos objectivos a que as partes se propuseram com a cláusula proibitória: se pretenderam evitar tout court a detenção de animais ou se pretenderam evitar os prejuízos que a presença de animais no edifício pode causar.
      Neste sentido, é pacificamente aceite que as cláusulas gerais que proíbem a detenção de animais não abrangem os pequenos animais, como peixes, ratos, hamsters e pequenas aves, porque não são susceptíveis de causar qualquer incómodo aos condóminos vizinhos. E no que respeita a animais que possam causar distúrbios, como cães, gatos ou aves, a proibição deverá ter necessariamente em conta o concreto prejuízo a que esses animais dão origem”.
      Mas para além daqueles das normas da vizinhança e da tutela da personalidade podem ainda existir casos especiais de valoração.
      Efectivamente, quando existe necessidade de se valorar, num caso concreto, um conflito entre a faculdade de deter animais numa fracção autónoma ou num locado e o direito de propriedade do senhorio ou de personalidade deste ou de outros condóminos, não se pode deixar de atender ainda ao valor específico que um animal de companhia tem para o seu dono, e que pode ser, inclusive, constituinte da sua personalidade.
      Na verdade, os animais, ainda que considerados pelo nosso ordenamento jurídico como coisas (nos termos do artigo 202.º, n.º 1 do CCivil), fazem parte daquele tipo de propriedade a que tradicionalmente se chama propriedade pessoal, ou seja, propriedade de certos bens que estão ligados à auto-construção da personalidade.
      De facto, como observa Sandra Passinhas[19] “Muitas pessoas detêm objectos que sentem como se fossem quase parte delas próprias; estas coisas estão ligadas profundamente à sua própria personalidade porque são o meio através do qual se constroem continuamente enquanto entidades no mundo. O critério para avaliar o significado da relação de alguém com um objecto é o do tipo de dano ou sofrimento que a sua perda causa. Neste sentido, um objecto está relacionado com a construção da personalidade de uma pessoa se a sua perda causa um dano que não pode ser reparado pela sua substituição. O oposto de ter um objecto que se torna parte da própria pessoa é ter um bem perfeitamente fungível por outro de igual valor de mercado; estes objectos têm um valor meramente instrumental para a auto-constituição pessoal”.
      Ora, neste quadro conceptual, os animais de companhia, enquanto propriedade, são constitutivos da personalidade de cada indivíduo.
      Citando novamente Sandra Passinhas[20] “Os animais enriquecem as nossas vidas, têm um efeito positivo no comportamento e na saúde humanos, podem melhorar os ânimos e exercer uma influência importante nas crianças, nos idosos e nos deficientes. As pessoas que, por sofrerem de doenças graves ou pela idade, estão confinadas às suas casas, retiram um benefício terapêutico, mesmo espiritual, da presença de um animal. Àqueles que vivem sozinhos, os animais oferecem consolo e muitas vezes até uma razão para viverem. As crianças aprendem o valor da responsabilidade e da disciplina, desenvolvendo um sentido de protecção e de generosidade. Aos adultos, um animal em casa pode ainda ser uma fonte de segurança”.
      Portanto, na sua actividade valorativa e coordenadora, o juiz tem de atender ao valor pessoalmente constitutivo que o animal possa ter para o seu dono[21], por exemplo para uma pessoa que viva sozinha ou mesmo o trauma psicológico que pode causar a perda de um animal.
      Postos estes considerandos, desçamos novamente ao caso concreto dos autos.
      No que tange aos concretos prejuízos e distúrbios que o canídeo em causa possa causar quer à apelada quer aos restantes vizinhos moradores do prédio em que se insere o locado, verifica-se que apenas ficou provado que:
      a)- O animal ladra, corre, faz ruído;
      b)- O canídeo de nome “H… é da raça …, sendo que, os cães da referida raça são conhecidos por serem sociáveis, e serem poucos latidores.
      Portanto, sobe este conspecto não ficou provado como a Autora havia alegado que:
      a)- O canídeo era de grande porte e de raça aparentemente proibida;
      b)- Intimida e incomoda os habitantes do prédio e as pessoas que lá se deslocam;
      c)- A falta de limpeza por parte da aqui Ré C… é de tal forma notória, que os vizinhos falam mesmo de um ambiente propício à existência de ratos e demais animais e consequentemente ambiente que coloca em risco a saúde pública;
      d)- O latir do canídeo dia e noite, os maus cheiros causados pelo local inadequado onde está instalado e a poluição do ar são condições suficientes para colocar em risco tanto a higiene, como o sossego, daqueles que habitam no prédio descrito no item 1 desta peça processual, como nos demais prédios confinantes.
      Decorre, pois, do citado quadro factual que o canídeo não é fonte de qualquer prejuízo para o sossego, a salubridade ou a segurança da apelada ou dos restantes moradores do prédio, diga-se, aliás, a raça em causa (…) é conhecida por ser dócil e muito sociável quer em relação aos respectivo donos quer em relação a qualquer estranho.[22]
      Mas para além de o “H…” não constituir fonte de prejuízo e desassossego, importa, neste caso concreto, atender sobretudo ao valor pessoal constitutivo que ele tem para a família da apelante e, mais concretamente, para o seu filho I….
      Com efeito, resulta dos factos assentes que “O canídeo reveste importância no seio da família e no bom desenvolvimento do I…, que tem perturbações de ansiedade”.
      Como assim e ainda, como supra se referiu, que no actual quadro terminológico do direito português os animais sejam considerados coisas, neste caso concreto e em sede de valoração, importa dar prevalência ao valor pessoalmente constitutivo que a detenção do “H…” tem para os seus donos em detrimento do direito de propriedade que o senhorio tem sobre o locado e da sua vontade de que dele não usufrua um animal doméstico.
      Na realidade, a habitação é um espaço de convívio e nesse convívio os animais participam não como coisas mas como conviventes e, como não pode deixar de ser, de acordo com as regras da sã convivência, entre conviventes é necessário suportar os pequenos incómodos causados pelos outros.
      Como assim, não obstante constar de proibição expressa a existência de um canídeo no locado, a referida cláusula deve considerar-se não escrita quando se prova que ele tem, neste caso, valor pessoalmente constitutivo para a vida familiar e essencialmente para o filho da apelante e não se prova, por outra banda, que ele cause qualquer prejuízo para o sossego, a salubridade ou a segurança dos restantes moradores e da Autora apelada.
      Por esta razão não existindo incumprimento contratual também não existe fundamento para que a apelada seja compelida à retirada do canídeo do locado.
      Evidentemente que isto não significa que a mesma cláusula se não mantenha actuante quando, por exemplo, no futuro se venha alterar o quadro factual actualmente existente.
      *
      Procedem desta forma, as conclusões K) a AA) formuladas pela apelante e, com elas, o respectivo recurso.
      *
      IV-DECISÃO

    Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação interposta procedente por provada e, consequentemente, revogar a decisão recorrida na parte em que condenou a Ré a retirar o cão do locado, absolvendo-a, assim, desse pedido.

    Custas da apelação pela Autora apelada (artigo 527.º nº 1 do C.P.Civil).

    Porto, 21 de Novembro de 2016.
    Manuel Domingos Fernandes
    Miguel Baldaia de Morais
    Jorge Seabra

    3091/15.6T8GDM.P1
    Nº Convencional: JTRP000
    Relator: MANUEL DOMINGOS FERNANDES
    Descritores: CONTRATO DE ARRENDAMENTO PARA HABITAÇÃO
    INTERPRETAÇÃO
    PROIBIÇÃO DE CÃES NO LOCADO
    JUNÇÃO DE DOCUMENTOS
    REAPRECIAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO

    RP201611213091/15.6T8GDM.P1
    Data do Acordão: 11/21/2016
    Votação: UNANIMIDADE
    Texto Integral: S
    Privacidade: 1

    Meio Processual: APELAÇÃO
    Decisão: REVOGADA
    Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º 637, FLS. 28-42)

  • Contrato Promessa de Compra e Venda (CPCV) e devolução em dobro ou perda do sinal

    Recomendamos cuidado com as cláusulas do Contrato Promessa de Compra e Venda (CPCV) acerca da devolução em dobro ou perda do sinal.

    Além disso, ressaltamos que, de acordo com o artigo 405, nº 1, do Código Civil, dentro dos limites da lei, as partes têm a faculdade de fixar livremente o conteúdo dos contratos e incluir nestes as cláusulas que lhes aprouver. Portanto, as partes devem fazer constar cláusulas importantes, como prazo para assinatura da escritura e a consequência em caso de incumprimento.

    É muito comum que haja cláusulas no CPCV, no sentido de que, havendo incumprimento do vendedor, este deverá devolver o sinal em dobro. Aliás, esta cláusula encontra fundamento no artigo 442º do Código Civil.

    Por outro lado, havendo incumprimento do comprador, este perde o valor o sinal pago.

    Enfatize-se que, conforme já demonstrado acima, as partes têm a faculdade de fixar livremente o conteúdo dos contratos e incluir nestes as cláusulas que lhes aprouver. Portanto, é possível redigir cláusulas sobre as questões relativas a perda de sinal ou devolução em dobro.

    Adriano Martins Pinheiro é advogado em Portugal, escritor e formador

    https://advocaciapinheiro.com/
    (mais…)
  • Caderneta Predial. Como consultar e analisar | Compra e Venda de Imóvel

    Caderneta Predial. Como consultar e analisar | Compra e Venda de Imóvel

    Tópicos: Caderneta Predial | Consultar e analisar | Compra e Venda de Imóvel | Portugal

    O que é a caderneta predial?

    A caderneta predial é um documento emitido pelas Finanças (Autoridade Tributária de Portugal), onde constam informações essenciais em matéria fiscal. O documento pode ser uma caderneta predial urbana (CPU) ou pode ser uma caderneta predial rural (CPR).

    Para facilitar a compreensão, podemos dizer que a caderneta predial pode ser compreendida como o NIF do imóvel, enquanto o assento de nascimento do imóvel seria a certidão de registo predial. Essa não é uma definição técnica, mas ajuda a compreender o contexto de tais documentos.

    A importância da caderneta predial

    Em uma negociação imobiliária a caderneta predial torna-se indispensável. Isso porque, não se faz escritura de compra e venda de um imóvel sem a análise da caderneta predial. Da mesma forma, os bancos não concedem financiamento (crédito habitação), antes de analisar o referido documento.

    Em razão das exigências mencionadas anteriormente, não se deve fazer o Contrato Promessa de Compra e Venda (CPCV), sem a consulta e atualização da caderneta predial. Caso contrário, as partes podem ter prejuízos e diversos transtornos.

    Como consultar a caderneta predial

    O proprietário pode consultar a caderneta do seu próprio imóvel no site das Finanças. Contudo, não é possível consultar a caderneta de uma outra pessoa.

    Os interessados podem solicitar a caderneta predial de qualquer imóvel a um advogado, desde que seja possível obter os dados para a pesquisa, como artigo matricial, NIF do proprietário, conselho, freguesia, dentre outros.

    Contudo, não basta consultar a caderneta predial; é necessária uma análise minuciosa, para identificar eventuais inconsistências e fazer os requerimentos para as respectivas correções – quando for o caso.

    A análise preventiva da caderneta predial

    As informações da caderneta predial devem ser confrontadas com as informações da certidão de registo predial. Não pode haver divergência. É o que determina o Código do Notariado, em relação à harmonia de informações entre os dois documentos.

    Para evitar um texto longo sobre o assunto, basta enfatizar que a análise preventiva na compra de um imóvel (due diligence imobiliária) tem o objetivo de evitar que qualquer inconsistência na caderneta predial inviabilize a escritura pública de compra e venda ou o financiamento bancário (crédito habitação).

    A caderneta predial e o Contrato Promessa de Compra e Venda (CPCV)

    Portanto, considerando que a caderneta predial pode inviabilizar a escritura pública e/ou o financiamento bancário – como visto acima-, os interessados devem ter a máxima atenção ao referido documento, antes de contrair obrigações no Contrato Promessa de Compra e venda.

    Assinar o Contrato Compromisso de Compra e Venda de forma precipitada, sem a devida análise preventiva, pode resultar em prejuízo financeiro, a depender das cláusulas do CPCV.

    Informações encontradas na caderneta predial

    Ao analisar a caderneta predial de um imóvel, podemos encontrar: identificação do prédio, localização, descrição, área do prédio e da fração, confrontações, avaliação, titulares, dentre outras informações.

    Conclusão

    O advogado habituado com due diligence imobiliária pode, além de providenciar a caderneta predial, fazer a análise preventiva, requerer retificações junto às Finanças. Dessa forma, a transação imobiliária fica mais segura às partes e aos profissionais envolvidos.

    Autor: Adriano Martins Pinheiro é advogado em Portugal, escritor e formador. Atua com análise preventiva de compra e venda de imóveis e contratos imobiliários.

    Leia nossos outros artigos:

    Certidão do registo predial: análise indispensável na compra e venda de imóveis

    A importância da segurança e agilidade para os consultores imobiliários

    Compra e Venda de Imóvel em Portugal | Contrato, Documentos e Impostos

    Licença de utilização: documento indispensável na compra e venda de imóveis

    Análise preventiva de documentos para uma negociação imobiliária segura

    Escritura pública na compra e venda de imóvel

    Contra Promessa de Compra e Venda (CPCV)

    Caderneta Predial e Certidão do Registo Predial , de acordo com o Código do Notariado

    tags: caderneta predial urbana, caderneta predial rural, finanças, consulta, compra e venda de imóvel, arrendamento,

  • Certidão do registo predial: análise indispensável na compra e venda de imóveis

    Certidão do registo predial: análise indispensável na compra e venda de imóveis

    A certidão do registo predial ou CRP contém todos os dados referentes a um imóvel. Esse é o primeiro documento a ser analisado em uma compra e venda de um imóvel.

    Essa certidão pode ser compreendida como o assento de nascimento da propriedade.

    Ao analisar a certidão do registo predial é possível saber quem é o atual proprietário; histórico do imóvel; hipotecas, penhoras; área correta; dentre outras informações essenciais.

    Em razão disso, a certidão do registo predial é o primeiro documento a ser pedido pelo profissional dedicado à análise preventiva da negociação imobiliária – a chamada due diligence imobiliária.

    A referida análise busca identificar inconsistências no negócio, para que os interessados providenciem a solução, antes mesmo da assinatura do contrato promessa de compra e venda, bem como previne problemas no dia da assinatura da escritura pública junto ao notário.

    Além disso, a análise preventiva é essencial para a aprovação de financiamento bancário do imóvel (crédito habitação).

    Após a venda do imóvel, a escritura pública é enviada à conservatória do registo predial, que fará constar o nome do comprador, como novo proprietário. Contudo, tanto a escritura pública como o registo do imóvel podem não acontecer, em caso de inconsistências.

    Portanto, para uma negociação imobiliária segura, recomenda-se a máxima atenção na análise da certidão do registo predial, além dos outros documentos essenciais ao registo.

    Quais dados são necessários para obter a certidão do registo predial?

    O vendedor (ou o senhorio) deve disponibilizar uma cópia da certidão do registo predial ao comprador (ou inquilino). Outra opção é o vendedor informar o código de acesso da certidão, pois com este código o interessado pode fazer a consulta do documento.

    Certidão do registo predial

    Nosso escritório faz a pesquisa e o pedido da certidão de registo predial. Mas, são necessários os dados abaixo:

    • o número da descrição (o número que o prédio tem no registo predial) ou o artigo da matriz (o número com o qual o prédio está inscrito nas finanças) e a natureza do artigo (rústico ou urbano);
    • se for uma fração autónoma (um apartamento, por exemplo) a letra que identifica a fração/unidade de alojamento
    • se for um apartamento em regime de time-sharing, a letra que identifica a fração (por exemplo, A, B, CX) e a fração temporal a que respeita (por exemplo, 52, que é o número da fração temporal correspondente à última semana do ano)
    • a freguesia e o concelho onde se situa (deve indicar a freguesia e o concelho mencionados no documento de onde retirou o número da descrição ou o artigo da matriz).

    Para ter a certidão será necessário o pagamento de uma taxa. Em regra, o escritório recebe o documento em dois dias úteis.

    Autor: Adriano Martins Pinheiro é advogado em Portugal, escritor e formador. Atua com due diligence imobiliária e contratos.

    Leia nossos outros artigos:

    Caderneta Predial: análise indispensável na compra e venda de imóveis

    A importância da segurança e agilidade para os consultores imobiliários

    Compra e Venda de Imóvel em Portugal | Contrato, Documentos e Impostos

    Licença de utilização: documento indispensável na compra e venda de imóveis

    Análise preventiva de documentos para uma negociação imobiliária segura

    Escritura pública na compra e venda de imóvel

    Contra Promessa de Compra e Venda (CPCV)

    Caderneta Predial e Certidão do Registo Predial , de acordo com o Código do Notariado

    https://advocaciapinheiro.com/

    tags: compra e venda portugal, cpcv, contrato promessa de compra e venda, registo predial, certidão de registro predial

  • Contrato Promessa de Compra e Venda | Escritura Pública | TR Porto

    Caso prático: Contrato Promessa de Compra e Venda | CPCV | Escritura Pública | TR Porto

    I – O princípio da liberdade contratual consagrado no artigo 405º, do Cód. Civil, enquanto manifestação a autonomia privada, desdobra-se na faculdade de celebrar ou não contratos e de conformar o seu conteúdo, dentro dos limites estabelecidos na lei.

    II – Neste contexto, nada obsta a que as partes, no gozo daquela sua autonomia privada estipulem, num contrato promessa de compra e venda de determinadas fracções (associado a um contrato de arrendamento dessas fracções a favor do promitente-comprador /arrendatário), uma cláusula em que reservem a possibilidade de distrate unilateral desse contrato promessa de compra e venda.

    III – Uma cláusula deste tipo, interpretada segundo a teoria da impressão do declaratário, consagrada no artigo 236º, n.º 1, do Cód. Civil, não pode deixar de significar, para um declaratário normalmente diligente e sagaz nas mesmas circunstâncias, que as partes (ambas) quiseram deixar expressamente em aberto a hipótese de, em função da avaliação que façam dos seus próprios interesses, virem ou não virem a celebrar o contrato de compra e venda prometido.

    Sumário (elaborado pelo Juiz Relator):

    Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto:

    I. RELATÓRIO:

    1. AA intentou a presente acção declarativa de condenação sob a forma de processo comum contra HERANÇA INDIVISA ABERTA POR ÓBITO DE BB, na pessoa da cabeça de casal CC, viúva, por si e na dita qualidade de cabeça-de-casal, DD e mulher EE, FF e mulher GG, invocando, no essencial, o não cumprimento do contrato promessa de compra e venda celebrado entre as partes (ele, Autor, enquanto promitente comprador e os ora RR. como promitentes vendedores) a 30 de Novembro de 2016, promessa que tinha por objecto as fracções autónomas designadas pelas letras “A” e “B” do prédio urbano, em regime propriedade horizontal, sito na Rua …, …, da freguesia …, concelho do Porto.
      Por outro lado, alegou, ainda, que no 31 de Outubro de 2016, celebrou, como arrendatário, um outro contrato de arrendamento com opção de compra, este sobre as fracções autónomas designadas com as letras “C” e “D”, do prédio urbano sito na Rua …, …, … Porto.
      Referiu, ainda, que estas últimas fracções compõem a totalidade do espaço do armazém onde também se situam as fracções prometidas vender pelos RR., ou seja, as ditas as fracções “A” e “B”), sendo que o contexto global de negociação entre o Autor com todos os demais intervenientes foi sempre a aquisição global de todas as ditas fracções (“A”, “B”, “C” e “D”).
      Neste contexto, invocou que, em face da recusa dos RR. na celebração do prometido contrato de compra e venda (quanto às fracções A e B), deixou de proceder ao pagamento das rendas previstas, uma vez que, caso a escritura pública de compra e venda tivesse sido realizada, os Réus, mais concretamente a Herança Indivisa de BB, deixariam de auferir aqueles valores, razão pela qual, desde o dia 07.06.2019, se encontra a realizar consignação em depósito dos valores dessas mesmas rendas.
      Conclui no sentido da procedência da presente acção e, em consequência, ser proferida sentença que produza os efeitos da declaração negocial em falta, com vista à efectivação do contrato prometido, com efeitos retroactivos a 15.04.2019, devendo, afinal, os valores consignados em depósito pelo Autor serem abatidos ao valor da escritura pública de compra e venda a realizar, ou então ser-lhe restituído integralmente tal valor e realizar-se a escritura pelo valor prometido.
    2. Citados, os RR. impugnaram parcialmente a factualidade alegada pelo Autor, sustentando, no essencial, que procederam ao distrate do ajuizado contrato promessa de compra e venda, conforme previsto no corpo da cláusula 4ª do mesmo contrato, o que comunicaram ao Autor por meio de carta registada com aviso de recepção datada de 19.11.2018, carta esta que o mesmo recebeu.
      Por conseguinte, em seu ver, o contrato promessa cuja execução específica vem peticionada pelo Autor está extinto, sendo inviável a pretensão quanto ao seu cumprimento por via de execução específica, com a consequente improcedência da acção.
    3. Foi proferido despacho saneador tabelar, com fixação do objecto do litígio e delimitação dos temas de prova.
    4. Efectuado o julgamento, veio a ser proferida sentença que julgou totalmente improcedente a acção instaurada, absolvendo os RR. do pedido formulado.
    5. Inconformado, veio o Autor interpor recurso da sentença, aduzindo alegações e formulando, a final, as seguintes

    CONCLUSÕES

    A. Vem o presente recurso interposto da circunstância de o Recorrente não se conformar com a Sentença proferida pelo Dign.º Tribunal “a quo”, em que julgou como improcedente o pedido formulado pelo Apelante para que o mesmo pudesse usar mão do instituto da execução especifica por forma a ver cumprida a vontade que efetivamente contratou e que presidiu à outorga do contrato promessa de compra e venda.
    B. Não obstante tal decisão, entende modestamente o ora Recorrente que foram violadas várias normas jurídicas, bem assim, foram interpretadas de forma desadequadas com o nosso sistema legal, várias normas jurídicas, devendo, por isso ser resposta a harmonia do Direito.
    I – DO CUMPRIMENTO DO CONTRATO
    C. Antes de tudo o mais, será de referir que o objeto do contrato promessa de compra e venda celebrado em 30/11/2016 versava sobre um projeto global de aquisição do prédio no seu todo, correspondendo o seu objeto às frações “A e B”, sendo que as frações “C e D” foram efectivamente adquiridas como prometido.
    D. No contrato sub judice, o Autor assumiu a obrigação de adquirir então as frações “A e B” e os Réus de as vender.
    E. Assim, em cumprimento com o disposto no contrato, no dia 2/12/2016, o Autor promoveu o agendamento da escritura pública de compra e venda em Cartório Notarial e comunicou aos Réus a data respetiva, para o dia 15/4/2019.
    F. De notar que, desde o dia 01 de dezembro de 2016 até à presente data, que o Réu usa, goza e frui das frações objeto do contrato promessa, liquidando as despesas relativas às quatro frações, tendo, além disso, procedido a avultadas reparações no interior das frações, bem assim realizado diversas e importantes benfeitorias, sempre convicto que adquiriria as quatro frações.
    G. Acontece que decorridos 2 anos sobre a comunicação da data da Escritura enviada e recepcionada pelos Réus, os Réus comunicaram ao Autor, em 19/11/2018, que pretendiam distratar o contrato, no uso de um direito potestativo contratualmente estabelecido, informando que deixariam de se considerar vinculados à obrigação de vender as frações autónomas “A” e “B”.
    H. A compra das frações “C e D” foi realizada nessa mesma data: 15/4/2019.
    I. As 4 frações consubstanciam um armazém único, tendo um único WC, um único contador de eletricidade, um único contador de água, sem quaisquer divisões ou por qualquer outra forma algo que sugira poder ser utilizado de forma independente. Razão pela qual o Apelante apenas tinha interesse em adquirir a totalidade do prédio / das frações, circunstância do total conhecimento dos Apelados.
    J. Chegado o dia agendado, não obstante a vinculação à comparência, os Réus não compareceram à escritura válida, legítima e legalmente agendada na referida data, nem à segunda tentativa, agendada para o dia 20 de maio de 2019, às 10:00 horas, no mesmo Cartório Notarial.
    K. A Questão que se coloca será da validade do exercício do alegado direito de distrate, que,
    L. A Sentença recorrida procedeu à consideração da existência do direito de distrate no seu sentido literal, fazendo referência ao disposto no artigo 238.º, n.º 1 e 2, do Código Civil, sobre a interpretação dos negócios formais, deixando de indagar do contrato no seu todo, do espírito que a globalidade do mesmo emerge e do exercício do contrato no caso concreto, isto é, considerando a conduta das partes e o que havia já sido executado do contrato celebrado.
    M. Mas, com o devido e merecido respeito, esqueceu-se o Dign.º Tribunal a quo que se o cumprimento pontual do contrato deve ser imputado às Partes, também o deveria ter considerado em relação à obrigação dos Apelados comparecerem e realizarem a outorga da Escritura Pública de Compra e Venda, que foi valida e legitimamente marcada pelo Apelante e que, por tal facto, encontravam-se os Apelados vinculados ao seu cumprimento,
    N. Note-se que a marcação e comunicação aos Apelados da Escritura Pública de Compra e Venda é anterior ao (suposto) exercício do distrate e, por isso, não poderiam os Apelados fazer uso de tal direito em detrimento da obrigação a que estavam vinculados e com prazo de cumprimento determinado, conseguindo com isto livrar-se das obrigações que assumiram e às quais o Direito confere relevância jurídica, por estarem conscientes que o Apelante logrou valorizar o valor que as frações possuem no mercado imobiliário e daí retirarem vantagens.
    O. De acordo com o artigo 239.º do Código Civil, “deve atender-se à vontade presumível dos declarantes. Mas pode acontecer que, por esse meio, se chegue a uma solução contrária aos princípios da boa-fé. Neste caso, deve prevalecer a solução que melhor salvaguarda esses princípios. (…) A integração de um negócio jurídico através dos critérios indicados no artigo 239.º deve ser considerada matéria de direito (…).” (vide, LIMA, Pires de, VARELA, Antunes, Código Civil Anotado, Vol. I, 4.º Ed., Revista e Atualizada, Coimbra Editora, Coimbra, 2010, pp. 226 e 227).
    P. Pelo exposto, não poderia a Sentença recorrida limitar-se a socorrer-se única e somente dos elementos relacionados com a interpretação do contrato, enquanto negócio formal, quando, na sua interpretação, resumiu-se, a considerá-lo, de forma superficial e literal, esgotando aí todo o seu sentido, concluindo assim pela existência e validade do direito de distrate ao abrigo do artigo 406.º, n.º 2, do Código Civil, nos termos estáticos que interpretou, desconsiderando, na verdade, todo o circunstancialismo em que o contrato se desenvolveu e que nos autos ficaram provados!
    Q. Ainda sobre a matéria, já se debruçou o Supremo Tribunal de Justiça, referindo que “As regras constantes dos arts. 236.º a 238.º do CC constituem directrizes que visam vincular o intérprete a um dos sentidos propiciados pela actividade interpretativa, e o que basicamente se retira do art. 236.º é que, em homenagem aos princípios da protecção da confiança e da segurança do tráfico jurídico, dá-se prioridade, em tese geral, ao ponto de vista do declaratário (receptor) (vide Acórdão proferido pelo Egrégio Supremo Tribunal de Justiça, em 12-06-2021, no âmbito do processo n.º 14/06.7TBCMG.G1.S1).
    R. No mesmo acórdão considerou ainda o Tribunal que “[s]e não se afigurar viável chegar a um resultado suficientemente claro sobre a interpretação do negócio jurídico (…) – há que lançar mão do art. 237.º do CC, que dispõe para os casos duvidosos.”
    S. Nunca a sentença poderia concluir no sentido que o fez, sem se debruçar, primeiramente, sobre a necessidade de interpretar o sentido realmente compreendido pelo Apelante, enquanto declaratário, ou, caso por tal via não chegasse a um resultado claro, pela ponderação de aplicação do regime previsto para os casos duvidosos previstos no artigo 237.º do Código Civil.
    T. E o mesmo se diz, que deveria o Dign.º Tribunal a quo ter considerado a integração do contrato, dada a omissão do mesmo em relação à articulação da marcação da escritura e do direito de distrate, que o deveria ter feito, pautando, nesse exercício de interpretação e integração, pela salvaguarda do princípio da boa-fé e pelo equilíbrio entre as Partes, por força do disposto nos artigos 236.º, n.º 1, 238.º e 239.º do Código Civil.
    U. Apurados estes elementos, não poderia o Tribunal a quo ter desconsiderado, sem mais, a vinculação da obrigação de vender aos Apelados e que era anterior à referida pretensão de distratar!
    V. Por todo o exposto, resulta de forma absolutamente inequívoca que assiste razão ao Autor/Apelante na ação por si intentada, uma vez que o contrato promessa celebrado se encontra vigente e é vinculativo às Partes contratantes, pelo que os Apelados se encontram em mora no cumprimento da sua obrigação de vender as referidas frações.
    II – SEM PRESCINDIR – DOS PRINCÍPIOS DA CERTEZA E SEGURANÇA JURÍDICAS
    W. O direito do Apelante à execução específica do contrato será sempre de se reconhecer por força dos valores da certeza e segurança jurídicas e que é deduzido pelo Tribunal Constitucional a partir do princípio do Estado de direito democrático, constante do artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa.
    X. O Direito supõe um “mínimo de certeza e segurança nos direitos das pessoas e nas expectativas juridicamente criadas a que está imanente uma ideia de protecção da confiança dos cidadãos e da comunidade na ordem jurídica e na actuação do Estado” (cfr. Acórdão proferido pelo Egrégio Supremo Tribunal Administrativo, em 13-11-2007, no processo n.º 0164A/04).
    Y. A ordem jurídica tem de garantir às pessoas a continuidade das suas relações jurídicas e a possibilidade de ponderar e calcular as consequências dos atos que praticam, pelo que a possibilidade de distratar um contrato promessa, cuja escritura já se encontra determinada no tempo e espaço, lesa diretamente os valores de certeza e segurança jurídicas e que devem ser respeitados – e reconhecidos – a qualquer sujeito na sua atuação na ordem jurídica.
    Z. A violação do princípio da confiança, que garante inequivocamente um mínimo de certeza e segurança das pessoas quanto aos direitos e expectativas legitimamente criadas no desenvolvimento das relações jurídico-privadas, provoca um injustificado benefício para os Apelados, que, por sua livre vontade e prosseguindo os seus individuais interesses, pretenderam extinguir o contrato que produzia validamente os seus efeitos, em detrimento do Apelante, causando-lhe sério prejuízo, tendo em conta todo o investimento realizado pelo mesmo face às suas expetativas legítimas e juridicamente relevantes.
    AA. O distrate do contrato comunicado em 19 de novembro de 2018, quase dois anos após a comunicação do Apelante sobre a marcação da Escritura Pública, e a cinco meses antes da efectiva realização da escritura, configura uma conduta contrária à expetativa que o Autor adquiriu ao longo do cumprimento do contrato, bem como choca com a segurança jurídica e estabilidade do tráfego jurídico que ao mesmo deverá ser reconhecido (acrescendo que o Apelante realizou um investimento avultado em benfeitorias, conforme resulta da sentença recorrida).
    BB. Deve, por isso, prevalecer a ideia de justiça, de Direito, face aos princípios da segurança e certeza jurídicas, consubstanciados na normal execução e cumprimento do contrato promessa.
    CC. Assim, resulta de forma absolutamente inequívoca que assiste razão ao Autor na ação por si intentada, devendo ser o presente recurso de apelação julgado totalmente procedente, por provado, revogando-se a sentença ora recorrida, para todos os devidos e legais efeitos.
    Nestes termos e nos demais do Direito, entende muito modestamente o ora Recorrente que deve ser concedido provimento ao presente recurso e, por via disso, ser revogada a decisão ora recorrida e substituída por outra que julgue a petição inicial totalmente procedente, por provada, e condene os Réus/Recorridos ao cumprimento do contrato assinado, nomeadamente através da figura da execução específica, para todos os devidos e legais…
    **

    1. Os RR. contra-alegaram pela improcedência do recurso e consequente manutenção da sentença.
      **
    2. Observados os vistos legais, cumpre decidir.
      **
      II. DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO:
      O objecto do recurso é definido pelas conclusões da alegação do apelante, não sendo lícito a este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – artigos 635º, n.º 3, e 639º, n.ºs 1 e 2, do novo Código de Processo Civil, na redacção emergente da Lei n.º 41/2013 de 26.06 [doravante designado apenas por CPC].
      Por outro lado, ainda, sem prejuízo das matérias de conhecimento oficioso, o tribunal de recurso não pode conhecer de questões não antes suscitadas pelas partes em 1ª instância e, por isso, não apreciadas na decisão proferida, sendo que a instância recursiva, tal como configurada no nosso sistema de recursos, não se destina à reapreciação de novas questões e à prolação de novas decisões, mas ao reexame pela instância hierarquicamente superior da decisão proferida pelo Tribunal de 1ª instância, em função das questões oportunamente suscitadas pelas partes e dos fundamentos da própria decisão recorrida. [1]
      Assim, as questões a decidir, segundo a sua sequência lógica, são as seguintes:
      i. Cumprimento do Contrato Promessa de Compra e venda – Execução específica – Distrate do contrato promessa de compra e venda – Interpretação (integração) do mesmo contrato.
      **
      III. FUNDAMENTAÇÃO de FACTO:
      O Tribunal de 1ª instância julgou provados os seguintes factos:
    3. A aquisição das fracções autónomas designadas pelas letras “A” e “B” do prédio urbano, em regime propriedade horizontal, sito na Rua …, …, da freguesia …, concelho do Porto, descrito na Conservatória do Registo Predial do Porto sob o n.º … e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo …, da freguesia …, concelho do Porto mostra-se registada a favor dos RR., conforme documentos de fls. 19, 20, 21-22 e 23-24 dos presentes autos.
    4. Por acordo escrito, denominado de contrato promessa de compra e venda, celebrado a 30 de Novembro de 2016, os Réus prometeram vender, ao aqui Autor, que por sua vez prometeu comprar, as fracções “A” e “B” antes identificadas, conforme documento de fls. 25-30 dos presentes autos.
    5. No âmbito do acordo referido em 2., os Réus prometerem vender ao Autor, livre de quaisquer ónus ou encargos, que por sua vez prometeu comprar, as referidas fracções, pelo preço global de € 133.788,30 (Cento e Trinta e Três Euros Setecentos e Oitenta e Oito Euros e Trinta Cêntimos), correspondendo a quantia de 32.296,72 à fracção designada com a letra “A” e 101.491,58 à fracção autónoma designada com a letra “B”, preço esse, cujo pagamento seria efectuado, no acto e em simultâneo com a outorga da Escritura Pública de Compra e Venda (cláusula 1.ª e 2.ª do documento de fls. 25-30 dos presentes autos).
    6. Já no que se refere à competente escritura pública de compra e venda, e de acordo com o convencionado pelas partes, a mesma deveria ser marcada enquanto se mantivesse em vigor o propalado acordo, devendo o ora Autor avisar, por carta registada, com 15 dias de antecedência do dia, hora e local em que a mesma se fosse realizar (cláusula 5.ª do documento de fls. 25-30 dos presentes autos).
    7. De acordo com a cláusula 3.ª do acordo referido em 2., “No dia de hoje, a primeira, o segundo e o quarto outorgantes dão de arrendamento ao sexto outorgante, que toma de arrendamento, respectivamente, as fracções objecto deste contrato, sobre as quais detêm direitos de disposição do uso, gozo e fruição, pelo que convencionam que, entre o primeiro dia do trigésimo primeiro mês do contrato de arrendamento que celebram e o último dia do quinquagésimo quarto mês desse mesmo arrendamento, o sexto outorgante obriga-se a renunciar ao direito de distrate que se estabelece na cláusula quarta deste contrato, com o que manifesta perante os demais outorgantes a sua vontade em prometer comprar as referidas fracções a título definitivo ” (cláusula 3.ª do doc. de fls. 25-30 dos presentes autos).
    8. De acordo com a cláusula 4.ª do acordo referido em 2., “No prazo de cinco anos contados de hoje, cada um dos outorgantes pode distratar este contrato, sem direito a indemnização seja a que título for.
      PARAGRAFO PRIMEIRO: Findo o prazo a que alude o corpo desta cláusula, este contrato fica sem efeito, sem direito a indemnização seja a que título for.
      PARAGRAFO SEGUNDO: Consigna-se que os montantes pagos a título de rendas, não serão deduzidos, sob nenhuma circunstância, nos valores estabelecidos na Cláusula Segunda deste Contrato.
      PARAGRAFO TERCEIRO: Consigna-se que, nos termos desta Cláusula Quarta, compete ao Sexto Outorgante a construção da parede que dividirá a fracção B, objecto deste contrato, e a fracção C do mesmo prédio, a edificar, com respeito da Propriedade Horizontal, a suas totais expensas, não cabendo aos primeiros cinco outorgantes, qualquer obrigação de indemnizá-lo seja a que título for.
      PARAGRAFO QUARTO: Consigna-se ainda que, compete ao Sexto Outorgante a construção da parede que dividirá a fracção B, objecto deste contrato, e a fracção C do mesmo prédio, a edificar com respeito da Propriedade Horizontal, a suas totais expensas, não cabendo aos primeiros cinco outorgantes, qualquer obrigação de indemnizá-lo seja a que título for, caso o Sexto Outorgante cesse os vínculos contratuais de Arrendamento e de Compra e Venda, quer com os proprietários da fracção B, quer com os proprietários da fracção C.” (cláusula 4.ª do documento de fls. 25-30 dos presentes autos).
    9. No mesmo dia 30 de Novembro de 2016, foi celebrado entre Autor e Réus, um denominado contrato de arrendamento, pelo prazo de 05 anos, renovável por iguais e sucessivos períodos, enquanto não fosse denunciado por nenhuma das partes, com efeitos a partir do dia 01 de Dezembro de 2016 (documento de fls. 30-37 dos presentes autos).
    10. Sendo os recibos das rendas passados em nome da Herança Indivisa de BB, NIF …, cujos segunda, terceiro e quarto Réus são herdeiros (documento de fls. 38 dos presentes autos).
    11. Por cartas registadas, datadas de 02-12-2016, enviadas para os Réus, o Autor comunicou a estes o seguinte:
      “Venho comunicar-lhes que, no âmbito e em sequência do contrato promessa de compra e venda que celebrei com V/ Exas, entre outros, em 30 de Novembro deste ano, respeitante às fracções autónomas designadas pelas letras “A” e “B” do prédio urbano, em regime de propriedade horizontal, sito na Rua …, …, da freguesia …, concelho do Porto, descrito na Conservatória do Registo Predial do Porto sob o n.º … e inscrito na matriz predial urbana respectiva sob o artigo …, do qual sou ademais arrendatário, venho, nos termos e ao abrigo da respectiva cláusula quinta, informar que a escritura notarial do contrato prometido de compra e venda se encontra marcada para o dia 15 de Abril de 2019, pelas 10 horas, no Cartório Notarial da Senhora Dra. HH, sito na Rua …, …, … Porto…”, conforme documentos de fls. 39-40, 41-42 e 43-44 dos presentes autos.
    12. Em 19 de Novembro de 2018, o A. recebeu uma carta dos RR., da qual consta o seguinte:
      “Ref.ª : Contrato Promessa Compra e Venda datado de 30-11-2016
      Assunto: Exercício do direito potestativo da Cláusula 4ª do contrato
      Ex.mª Sr.:
      Reportámo-nos ao contrato promessa de compra e venda datado de 30-11-2016, que celebrámos com V. Exª e referente às fracções autónomas designadas pelas letras “A” e “B” do prédio sito na Rua …, freguesia …, concelho do Porto.
      Em resultado das negociações com intervenção dos respectivos advogados, acha-se exarado o direito potestativo de qualquer um dos outorgantes de extinguir esse contrato e deixar de estar vinculado à obrigação de contratar.
      Acha-se ainda convencionado que tal direito potestativo deve ser exercitado no prazo de 5 anos, sob pena de preclusão.
      Destarte e no uso desse direito potestativo, comunicamos a V. Exª que deixámos de estar vinculados à obrigação de vender as fracções autónomas acima referidas e cabalmente identificadas no contrato ”, conforme consta documento de fls. 45 dos presentes autos.
    13. Por cartas datadas de 01 de Abril de 2019, remetidas aos Réus, o Autor comunicou o seguinte:
      “Assunto: Escritura pública de compra e venda referente às fracções autónomas designadas pelas letras “A” e “B” do prédio sito na Rua …, freguesia …, concelho do Porto.
      (…) Vimos pelo presente, na qualidade de advogados de AA, relembrar que se encontra designado o dia 15-04-2019, pelas 10:00 horas, no Cartório Notarial da Drª. HH, sito na Rua …, …, … Porto, a realização de escritura pública de compra e venda das fiações autónomas designadas pelas letras “A” e “B” do prédio sito na Rua …, freguesia …, concelho do Porto, conforme marcação e agendamento já oportunamente comunicados …”, conforme documentos de fls. 46-47, 48-49 e 50-51 dos presentes autos.
    14. Os Réus responderam ao Autor, através de cartas datadas de 08-04-2019, referindo, em suma, que reiteravam as palavras vertidas na carta enviada pelos mesmos em 19-11-2018 …”, conforme documentos de fls. 52, 53 e 54 dos presentes autos.
    15. No dia 15 de Abril de 2019, compareceu perante a Notária do Cartório Notarial sito na Rua …, …, Porto, Lic. HH, II, na qualidade de gestora de negócios em representação de AA, NIF …, casado, natural de …, Lisboa, residente na Rua …, … …, Porto, para a outorga de uma escritura de compra e venda que se encontrava agendada neste cartório pelas 10h00. Não tendo sido apresentados quaisquer documentos necessários à outorga da escritura, foi pela comparecente declarado competir à parte vendedora a sua apresentação, tendo contudo requerido a junção a este certificado de cópia simples de contrato de promessa celebrado em 30/11/2016, cujo cumprimento se pretendia com a realização da escritura agendada.
      Que a escritura não se realizou, não fendo comparecido, os alegados promitentes vendedores, nem sido apresentada a necessária documentação, conforme certificado que consta como documento a fls. 55-56 dos presentes autos.
    16. O A. enviou nova missiva aos Réus, com data de 02-05-2019, com o seguinte teor:
      “ Assunto: Escritura pública de compra e venda referente às frações autónomas designadas pelas letras “A” e “B” do prédio sito na Rua …, freguesia …, concelho do Porto.
      (…) Vimos pelo presente, na qualidade de advogados de AA, manifestar que na sequência da não comparência à escritura pública de compra e venda previamente agendada para o dia 15-04-2019, pelas 10:00 horas, no Cartório Notarial da Dr.ª HH, sito na Rua …, …, … Porto, do imóvel supra identificado, o n/Cliente deseja resolver pacificamente e de forma extra-judicial o diferendo em questão.
      Com efeito, e tendo em conta tal facto, o n/Cliente convoca, numa última tentativa, a realização de escritura pública para o próximo dia 20 de maio de 2019, pelas 10:00 horas.
      Caso V.as Ex.as não compareçam a esta segunda e última data designada para a escritura pública de compra e venda do imóvel prometido vender, outra alternativa não restará ao n/Cliente que não seja o accionar dos meios legais competentes tendentes à salvaguarda e tutela dos seu mais legítimos e legais interesses… “, conforme documentos de fls. 63-64, 65-66 e 74-75 dos presentes autos.
    17. No dia 20 de Maio de 2019, pelas 11h30m compareceu perante a Notária do Cartório Notarial sito na Rua …, …, Porto, Lic. HH, JJ, na qualidade de gestora de negócios em representação de AA, NIF …, casado, natural de …, Lisboa, residente na Rua …, … …, Porto, para a outorga de uma escritura de compra e venda que se encontrava agendada neste cartório pelas 10h00
      Não tendo sido apresentados quaisquer documentos necessários à outorga da escritura, foi pela comparecente declarado competir à parte vendedora a sua apresentação, tendo contudo requerido a junção a este certificado de cópia simples de contrato de promessa celebrado em 30/11/2016, cujo cumprimento se pretendia com a realização da escritura agendada.
      Que a escritura não se realizou, não fendo comparecido, os alegados promitentes vendedores, nem sido apresentada a necessária documentação, conforme certificado que consta como documento a fls. 78 dos presentes autos.
    18. O A. tinha aprovado pela Banco 1… um financiamento para a seguinte operação:
      “OPERAÇÃO 2 – … …
      • Montante: € 133.788,30
      • Prazo: 84 meses
      • Taxa de Juro: EUR 12M>0+ 1.75%
      • Periodicidade: mensal e postecipado
      • Comissões: preçário
      • Garantias: aval + hipoteca FRACOES A e B
      • Outras: AF> 40% e net deb/ebitda inf a 4.5
      • Outras: Contratação de Seguro VOE e Acidentes Pessoais para os avalistas, bem como, Limite a Descoberto Negociado no montante de 5k€.” (documento de fls. 85 dos presentes autos).
    19. No dia 31 de Outubro de 2016, o A. outorgou um denominado “ contrato de arrendamento com opção de compra ” sobre as fracções autónomas designadas com as letras “C” e “D”, do prédio urbano sito na Rua …, …, … Porto, tal como consta do documento de fls. 86 a 93 dos presentes autos.
    20. As fracções “A” e “B”, que foram prometidas vender, integram o mesmo prédio urbano em regime de propriedade horizontal das fracções “C” e “D”, sendo estas e aquelas contíguas e os interessados nos diversos direitos reais (propriedade e usufrutos) constituídos nas fracções “C” e “D” são familiares dos aqui RR.
    21. O contexto global de negociação entre o Autor com todos os demais intervenientes, foi sempre na aquisição global das fracções designadas pelas letras “A”, “B”, “C” e “D”.
    22. A Escritura Pública de Compra e Venda referente às fracções “C” e “D” foi também agendada para o dia 15-04-2019, tendo sido a mesma outorgada, tal como consta do documento de fls. 94-103 dos presentes autos.
    23. O A. tinha aprovado pela Banco 1… um financiamento para a seguinte operação:
      “OPERAÇÃO 1 – … …
      • Montante: € 127.500,00 (compra por 150k€ e deduz rendas pagas à data de 22.5k€)
      • Prazo: 84 meses
      • Taxa de juro: EUR 12M>O+ 1.75%
      • Periodicidade: mensal e postecipado
      • Comissões: preçário
      • Garantias: aval + hipoteca FRACOES C E O
      • Outras: AF> 40% e net deb/ebitda inf a 4.5
      • Outras: Contratação de Seguro VOE e Acidentes Pessoais para os avalistas, bem como, Limite a Descoberto Negociado no montante de 5k€. (documento de fls. 85 dos presentes autos).
    24. Desde o dia 07-06-2019, que o Autor se encontra a realizar consignação em depósito dos valores dessas mesmas rendas (documento de fls. 104 dos presentes autos).
    25. Desde o dia 01 de Dezembro de 2016 que o Autor usa, goza e frui das fracções objecto do contrato promessa objecto dos presentes autos, sendo o Autor quem realiza os pagamentos relativos às despesas com as referidas fracções, como seja, água, luz e telefone, tendo, além disso, procedido a reparações no interior das fracções, bem assim realizado benfeitorias, nomeadamente pintura de toda a estrutura (paredes e tectos), bem como remodelou todo o sistema de electricidade e saneamento, bem ainda procedeu ao arranjo de todo o tecto, de onde advinham várias infiltrações e humidades.
    26. Por carta datada de 27-12-2016, registada e recebida pelo autor, os RR. comunicaram ao A. o seguinte:
      “Ex.mo Senhor
      Atento o teor das cartas que endereçou aos meus Constituintes supra identificados, cumpre-me informá-lo do seguinte:
      1 – Como é do seu conhecimento, a Cláusula Quinta do Contrato Promessa de Compra e Venda e a Cláusula Terceira do mesmo Contrato, complementam-se, o que significa que apenas, volvido o trigésimo (30º) mês do Contrato de Arrendamento, deverá V/ Ex.ª notificar os Promitentes Vendedores, do Cartório Notarial, data e hora para a realização da Escritura de Compra e Venda.
      2 – A data que V/ Exª seleccionou para a realização da Escritura não respeita os primeiros 30 meses de Contrato de Arrendamento para tal efeito.
      Assim sendo e, sem mais delongas, informo V/ Exª que está a incumprir o vertido no Contrato Promessa de Compra e Venda e, que por ora, apenas se dão por não havidas as cartas registadas que enviou aos meus Constituintes …”, conforme documento de fls. 137-138 dos presentes autos.
      **
      IV. FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA:
      Tendo presente o quadro factual acima descrito – e que não se mostra impugnado -, cumpre decidir do mérito da sentença recorrida e, nesse contexto, de modo fulcral à sorte do recurso, as questões atinentes à interpretação do ajuizado contrato (artigos 236º, 237º e 238º, do Cód. Civil) e à sua, eventual, integração (artigo 239º, do mesmo Código), não deixando de ponderar os princípios da certeza e segurança jurídicas que, segundo o apelante, deveriam ter sido ponderados pelo Tribunal de 1ª instância.
      A título prévio, impõe-se consignar que as partes não discordam (e bem) da qualificação efectuada pelo Tribunal de 1ª instância do negócio jurídico referido sob o ponto 2 da factualidade provada como um contrato promessa (bilateral) de compra e venda das fracções ali em causa (fracções A e B), sendo que em tal negócio o Autor/Apelante, como promitente-comprador, declarou comprar, mediante o pagamento do preço consignado, as ditas fracções, ao passo que os RR., enquanto proprietários das mesmas fracções, declararam vender as mesmas fracções, recebendo, em contrapartida, aquele mesmo preço, a ser pago (na íntegra) na data da celebração do prometido contrato de compra e venda.
      Com efeito, como é pacífico e resulta do artigo 410º, n.º 1, do Cód. Civil, o contrato promessa consiste na convenção pela qual uma (promessa unilateral) ou ambas as partes (promessa bilateral) se obriga a celebrar certo contrato no futuro (contrato prometido).
      Por conseguinte, como também é pacífico, ambas as partes no contrato promessa bilateral obrigam-se, em termos essenciais, a emitir dentro de certo prazo, ou sob determinados pressupostos, as declarações de vontade que corporizaram o negócio definitivo prometido, dando assim cumprimento à promessa antes celebrada.
      Neste sentido, como refere A. Varela, com a sua habitual clareza, “O contrato-promessa cria a obrigação de contratar, ou, mais concretamente, a obrigação de emitir a declaração de vontade correspondente ao contrato prometido. A obrigação assumida por ambos os contraentes, ou por um deles se a promessa é unilateral, tem assim por objecto uma prestação de facto positivo, um facere oportore. E o direito correspondente atribuído à outra parte traduz-se numa verdadeira pretensão.”[2]
      Neste contexto, não há dúvidas que o contrato promessa bilateral de compra e venda, cria, para ambos os promitentes, vínculos jurídicos, ou seja, obrigações para ambas as partes, qual seja, para o promitente-vendedor de, nas condições convencionadas, emitir a declaração de vontade correspondente à venda, e, por outro, para o promitente-comprador de emitir, nas mesmas condições convencionadas, a sua declaração de vontade correspondente à compra, assim tornando perfeito o contrato definitivo de compra e venda.
      E tanto assim é que, de facto, a lei associa ao incumprimento daqueles vínculos/obrigações emergentes da promessa determinadas sanções jurídicas, como seja, em caso de incumprimento definitivo da promessa a sua resolução por parte do promitente cumpridor e a obrigação do promitente faltoso pagar o dobro do sinal passado (se o faltoso for o promitente-vendedor), ou de reter em seu favor aquele sinal (se o faltoso for o promitente-comprador) – artigo 442º, n.ºs 1 e 2, do Cód. Civil -, assim como, em caso de simples mora e salvo convenção em contrário (convenção que está afastada nas hipóteses do
      n.º 3 do artigo 410º – artigo 830º, n.º 3, 1ª parte, do Cód. Civil), o direito de exigir o cumprimento específico do contrato definitivo, através do suprimento (pelo tribunal) da declaração de vontade omitida pelo promitente-faltoso – artigo 830º, n.º 1, do Cód. Civil. [3]
      Portanto, é fora de dúvida, não merecendo sequer discussão séria essa outra questão, ou seja, que o contrato-promessa, ainda que constituindo, como constitui, uma convenção preliminar ou preparatória de um outro contrato definitivo, gera obrigações, gera vínculos jurídicos para uma das partes (promessa unilateral) ou para ambas (promessa bilateral), nomeadamente, no que ora releva dada a natureza bilateral do contrato promessa em causa nos autos, para os promitentes-vendedores, ora apelados, no sentido de os mesmos, por via do ajuizado contrato promessa de compra e venda, se obrigarem perante o promitente-comprador, ora apelante (que se obriga a comprar), a celebrar o prometido contrato de (compra e) venda das fracções A e B, acima referidas.
      A questão fulcral ao litígio não é, assim, esta, mas outra distinta, como melhor se justificará noutro passo deste acórdão.
      Prosseguindo no anterior excurso, quanto à execução específica do contrato promessa de compra e venda, como já o referimos antes, a mesma supõe, em nosso ver, uma situação de simples mora e não de incumprimento definitivo.
      Neste sentido, como refere J. Calvão da Silva, op. cit., pág. 138, cuja posição sempre seguimos, “… Na verdade, se, na hipótese de o promitente (no contrato-promessa unilateral) ou um dos promitentes (na promessa bilateral) não cumprir pontualmente, nos termos devidos, o contrato, a outra parte intenta a acção de execução específica, é óbvio que através desta acção manifesta a vontade de ainda obter a prestação devida. Equivale a dizer, portanto, que o credor considera como simples atraso a violação do contrato por parte do devedor e, por isso, insiste no cumprimento retardado. Se, inversamente, o credor não tivesse, fundadamente, mais interesse na prestação, consideraria a violação do contrato com incumprimento definitivo e optaria pela resolução do mesmo.”[4]
      Por conseguinte, a execução específica, neste enquadramento, visará, em termos constitutivos, suprir a falta de emissão da declaração de vontade do promitente faltoso, substituindo o tribunal aquela omitida declaração, dando, assim, integral cumprimento ao contrato prometido e acautelando, da forma mais perfeita possível, o próprio interesse do promitente fiel (credor), interesse este que passa, naturalmente, em primeira linha, pela conclusão (forçada) do contrato definitivo e prometido.
      Neste mesmo sentido e dando nota da relevância do ressarcimento em forma específica, refere ainda J. Calvão da Silva, “… a reparação do dano pode ser natural (in natura, em forma específica) ou pecuniária (em dinheiro). A primeira é preferível, pois afasta e remove integralmente o dano real ou concreto, reconstitui o estado de coisas anterior à lesão, estabelece a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação (art. 562º) – dando à vítima aquilo de que foi privada. (…) O ressarcimento do dano in natura, porque se funda na lógica do próprio crédito, constitui a sanção perfeita e ideal do dano (proveniente do não cumprimento), dada a sua superioridade sobre a reparação (por equivalente) monetária, referida ao dano abstracto e, por isso, subsidiária. O cumprimento constitui a garantia (sanção) ideal do direito, porque realiza o próprio direito, actuando a prestação originária a que o credor tem direito. “ [5]
      Digamos que a execução específica é uma acção de cumprimento que, atenta a feição constitutiva de que está dotada a sentença, permite a satisfação in natura do interesse do credor, dispensando-o de percorrer a dupla etapa de condenação no cumprimento e posterior execução, posto que a própria sentença opera a modificação jurídica que teria ocorrido se a obrigação tivesse sido voluntariamente cumprida.
      Dito isto, como resulta dos autos e do próprio recurso em si, não esgrimem as partes a possibilidade (e o direito) de o aqui apelante lançar mão, à partida, daquele meio de tutela do seu arrogado direito ao cumprimento do ajuizado contrato-promessa de compra e venda, sendo certo que, apesar da não comparência dos RR. às duas datas designadas (e comunicadas) pelo Autor para a outorga do contrato definitivo, o mesmo Autor, como se vê da pretensão deduzida, mantém interesse na celebração do contrato definitivo.
      Estaríamos, assim, à partida, reconduzidos, como acima se referiu, para uma situação de mora no cumprimento, situação essa que viabilizaria, como também já o afirmámos e se mostra também decidido correctamente (e sem divergência das partes) pelo Tribunal de 1ª instância, o acesso à execução específica da promessa de compra e venda por parte do apelante e promitente-comprador.
      Sucede que, como também se mostra decidido pelo Tribunal de 1ª instância e nos merece inteira adesão, a questão que verdadeiramente motiva o litígio entre as partes e que ora se mostra replicada no recurso está situada a montante daquele alegado incumprimento da promessa por parte dos promitentes-vendedores e contende, necessária e essencialmente, com a interpretação e conjugação das suas cláusulas 4ª e 5ª (referidas sob os pontos 4 e 6 do elenco dos factos provados), sendo certo que, vingando a interpretação perfilhada pelo Tribunal de 1ª instância, obviamente estará excluído o incumprimento da dita promessa de compra e venda, pois que só pode ser incumprido o contrato que se encontre em vigor e já não aquele a que, antes, alguma parte tenha, nos termos convencionados, posto termo, designadamente por revogação ou distrate do mesmo.
      Neste enquadramento, as cláusulas ora em apreciação são as seguintes:
      Cláusula 4ª:
      No prazo de cinco anos contados de hoje, cada um dos outorgantes pode distratar este contrato, sem direito a indemnização seja a que título for.
      Cláusula 5ª:
      A escritura pública de compra e venda deverá ser marcada enquanto se mantiver em vigor o contrato promessa, devendo, para o efeito, o promitente-comprador (Autor) avisar, por carta registada, com 15 dias de antecedência do dia, hora e local em que a mesma se deve realizar.
      Da leitura e interpretação que o Autor/apelante faz destas cláusulas delas resulta que, em seu ver e segundo bem percebemos o seu raciocínio, procedendo ele à marcação de data para a celebração da escritura do prometido contrato de compra e venda das fracções A e B, como previsto na cláusula 5ª, estariam os RR. vinculados à celebração daquele prometido contrato definitivo e, portanto, não poderiam os mesmos já usar da prerrogativa prevista na cláusula 4ª, de procederem ao distrate do contrato-promessa, evitando, assim, o cumprimento devido do mesmo, cumprimento a que falharam ao não comparecer para a celebração do definitivo contrato de compra e venda das fracções A e B.
      Por seu turno, os RR. defendem, precisamente o oposto, ou seja, que a dita cláusula foi ali consignada para que os mesmos pudessem, a qualquer momento e segundo a sua própria (e unilateral) vontade, por termo ao contrato promessa em apreço, desvinculando-se do seu cumprimento em função da avaliação dos seus próprios interesses.
      Neste contexto, e com o devido respeito por opinião em contrário, não vislumbramos no contrato-promessa em causa, nas suas cláusulas e na demais factualidade provada nos autos, base bastante para a interpretação ou leitura defendida pelo promitente-comprador e ora apelante, sendo certo, ademais, que também não vemos, em sentido oposto ao também por si defendido, que lacuna as mesmas podem suscitar e que justifique a sua pretendida integração à luz do preceituado no artigo 239º, do Cód. Civil.
      Se não, vejamos.
      Desde logo, importa considerar que, à luz do preceituado 405º, do Cód. Civil e segundo o princípio da autonomia privada, as partes, dentro dos limites da lei, têm a faculdade de fixar livremente o conteúdo dos contratos, neles incluindo as cláusulas que lhes aprouver, assim como, ainda, de celebrar contratos distintos dos previstos na lei.
      Digamos que a liberdade contratual desdobra-se em três liberdades essenciais: a) liberdade de celebração, isto é, de celebrar ou recusar a celebração de contratos (n.º 1); b) a liberdade de estipulação, enquanto faculdade de decidir do conteúdo contratual, nele incluindo as cláusulas tidas por convenientes aos seus interesses (n.º 1); c) a liberdade de selecção do tipo negocial, que engloba a faculdade de escolher um dos modelos contratuais previstos na lei (contratos típicos), de celebrar contratos distintos dos previstos na lei (contratos atípicos), ou, ainda, a faculdade de reunir no mesmo contrato regras de dois ou mais negócios, total ou parcialmente regulados na lei (contratos mistos ou união de contratos).
      É esta ampla liberdade de conformação do conteúdo negocial que conduz, não raras vezes, ao surgimento da necessidade de proceder à interpretação dos negócios jurídicos e, nestes, à interpretação dos contratos.
      Tendo isto por assente, a interpretação do negócio jurídico, enquanto actividade destinada a determinar o significado juridicamente relevante do respectivo conteúdo declarativo, obedece, em termos gerais, aos princípios consignados no artigo 236º, do Cód. Civil.
      O dito normativo reza o seguinte:
      “1. A declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele.
    27. Sempre que o declaratário conheça a vontade real do declarante, é de acordo com ela que vale a declaração emitida. “
      Este normativo não tem merecido da parte da nossa doutrina uma leitura totalmente coincidente.
      Segundo uma parte da doutrina, o dito normativo consagra um método de interpretação de base subjectivista – fundado no n.º 2, que assim seria a norma «primária» de interpretação – temperado com elementos objectivistas em nome do princípio da responsabilidade aplicável ao declarante (n.º 1) [6] e, segundo uma outra corrente, consagra um método de interpretação objectivista puro, sem temperamentos subjectivistas – fundado no n.º 1 e que desconsidera a parte final de tal norma. [7]
      A jurisprudência, por seu lado, nesta temática, inclina-se em termos largamente maioritários para um método objectivista, temperado por elementos subjectivistas, perfilhando a denominada teoria da impressão do destinatário, na esteira da posição que veio a ser defendida por A. Varela, P. Lima e C. Mota Pinto, que, por sua vez, seguem, em boa parte, a precedente lição de Ferrer Correia e Rui de Alarcão nesta matéria.
      Neste sentido, refere C. Mota Pinto, “De entre as doutrinas objectivistas merece referência, por ser a melhor das suas variantes, a chamada teoria da impressão do destinatário; a declaração deve valer com o sentido que um destinatário razoável, colocado na posição concreta do real declaratário, lhe atribuiria; considera-se o real declaratário nas condições concretas em que se encontra e tomam-se em conta os elementos que ele conheceu efectivamente, mais os que uma pessoa razoável, quer dizer, normalmente esclarecida, zelosa e sagaz, teria conhecido, e figura-se que ele raciocinou sobre essas circunstâncias como o teria feito um declaratário razoável.”[8]
      Nesta matéria e independentemente da posição que o legislador tenha pretendido assumir no âmbito da aludida querela doutrinária, estamos em crer que, à luz do preceituado no artigo 236º, n.ºs 1 e 2, do Cód. Civil, é possível extrair, em termos de interpretação do negócio jurídico, as seguintes regras essenciais, aplicáveis caso a caso, regras essas que visam sobretudo proteger a confiança do declaratário e, reflexamente, a segurança e estabilidade do próprio tráfico jurídico.
      A primeira regra é a de que se existir uma vontade real comum ou coincidente entre as partes, isto é, se ambas as partes (declarante e declaratário ou destinatário da declaração) atribuírem o mesmo sentido/interpretação ao negócio jurídico, será o sentido correspondente a essa vontade comum aquele que se considera juridicamente relevante, mesmo que tal resultado interpretativo não se mostre totalmente espelhado no conteúdo objectivo da declaração negocial.
      Trata-se, nesta solução, de proteger ambas as partes, ou seja, quer o declarante que deu à sua declaração negocial um determinado significado, quer o próprio declaratário pois que esse significado colhe também a sua adesão/acordo.
      No caso dos autos, porém, esta hipótese não se nos coloca, pois que, como se evidencia das posições dos litigantes, o significado que cada uma das partes empresta ao negócio ora em análise e às aludidas cláusulas 4ª e 5ª do contrato promessa é radicalmente distinto, não existindo a aludida vontade (real) comum ou coincidente.
      Neste contexto, está também afastada a aplicação do n.º 2 do artigo 238º, do Cód. Civil, pois que este normativo supõe a existência de uma vontade real e comum das partes (um sentido compartilhado por ambas), mesmo que destituído de apoio mínimo no texto, vontade ou sentido comum que, como se disse, não existe no caso dos autos. [9]
      A segunda regra, como resulta do n.º 2 do citado artigo 236º, é a de que, se resultar demonstrado positivamente que o declaratário ou destinatário da declaração conhecia a vontade real do declarante, a declaração vale com o sentido que lhe foi dado pelo declarante.
      Neste caso, também a confiança do declaratário se mostra protegida, pois que o mesmo conhecia a vontade real do declarante e, portanto, não pode, a coberto do texto negocial, pretender que lhe seja atribuído um sentido distinto daquele que ele próprio conhecia.
      No entanto, insiste-se, para que a declaração negocial possa valer com o sentido que lhe é atribuído pelo declarante (correspondente à sua vontade real) é indispensável que se mostre demonstrado que o declaratário conhecia aquela vontade real do declarante, “seja qual for a causa da descoberta da real intenção do declarante.” [10]
      No caso dos autos também esta hipótese não se nos coloca pois que nada nos autos demonstra que os RR conhecessem o sentido ou leitura que o Autor ora pretende defender quanto à conjugação das cláusulas 4ª e 5ª do contrato-promessa, qual seja que, designando ele (promitente-comprador) a data para a realização da prometida escritura de compra e venda estaria, sem mais, excluída a aplicação da cláusula 4ª e, portanto, os mesmos RR ficariam impedidos de distratar ou revogar unilateralmente o contrato promessa em causa.
      Com efeito, uma tal leitura, ainda que possível face aos próprios interesses do promitente-comprador e ora apelante (que, assim, eliminaria, de imediato e de forma estritamente unilateral, o direito potestativo dos RR./promitentes-vendedores à desvinculação da promessa por via do seu distrate, como consagrado na dita cláusula 4ª), não só não colhe qualquer apoio no conjunto do texto do contrato-promessa, como, ademais, se mostra afastada, em nosso ver, pela cláusula 3ª do mesmo contrato (referida sob o ponto 5 dos factos provados), cláusula essa onde se previa, aí sim, mas em sentido desfavorável ao promitente-comprador/apelante (e em protecção dos interesses dos promitentes-vendedores/apelados), a obrigação daquele renunciar dentro de determinado prazo ali estabelecido (entre o primeiro dia do 31º mês de duração do contrato de arrendamento celebrado nessa mesma data entre as mesmas partes e sobre as ditas fracções A e B e o último dia do 54º mês de duração do mesmo arrendamento), àquele direito (potestativo) de distrate do contrato-promessa, reafirmando, assim, com tal renúncia, perante os promitentes-vendedores, a seriedade do seu compromisso quanto à compra das fracções em causa.
      Por conseguinte, o que emerge, à partida da conjugação das cláusulas em apreço e, em particular, da dita cláusula 4ª do contrato-promessa é o direito (potestativo) de qualquer um dos promitentes (comprador ou vendedores) poderem, por decisão unilateral e ao abrigo do princípio da liberdade contratual (na vertente de celebrarem ou não determinado contrato – no caso, o definitivo contrato de compra e venda), distratarem o contrato-promessa de compra e venda das fracções A e B, procedendo à sua revogação unilateral, conforme expressamente convencionado. [11]
      Por outro lado, ainda, quanto ao tempo do exercício de tal direito de distrate do contrato-promessa, os promitentes-vendedores poderiam fazê-lo em qualquer momento e durante o prazo de 5 anos a contar de 30.11.2016 (até 30.11.2021) como previsto na cláusula 4ª do contrato-promessa.
      Por outro lado, em sentido distinto, o promitente-comprador poderia fazê-lo, no limite máximo, até ao penúltimo dia do 54º mês (4 anos e seis meses, ou seja, no limite, até 30.05.2021) de duração do contrato de arrendamento, como decorre da cláusula 3ª do mesmo contrato-promessa, pois que, no limite máximo, no dia imediatamente seguinte, ou seja, 31.05.2021, o promitente-comprador, pelo contrário, ficava obrigado a renunciar, como se disse, ao seu direito de distrate do contrato promessa, vinculando-se, nesse contexto, a celebrar o contrato de compra e venda das fracções no termo dos 5 anos de duração mínima do contrato de arrendamento celebrado a 30.11.2016 sobre as mesmas fracções A e B, como decorre também deste último contrato de arrendamento com prazo certo (5 anos) celebrado entre as partes naquela mesma data e com efeitos a partir do dia 1.12.2016 – vide facto provado em 7.
      Todavia, se nada ocorresse (distrate ou renúncia ao distrate por parte do promitente-comprador), no final do prazo de 5 anos (a contar de 30.11.2016) o contrato promessa ficava sem efeito, sem direito a qualquer indemnização – parágrafo 1º d cláusula 4ª (facto provado em 6).
      Note-se, nesta matéria, que se o contexto das negociações e da natural expectativa do Autor era vir a adquirir o conjunto das fracções A, B, C e D (vide facto provado em 19), também é certo que os contratos que tinham por objecto as ditas fracções eram claramente distintos (vide facto provado em 17), as suas cláusulas eram também distintas (vide facto provado em 17 e documento a fls. 86-93 dos autos) e, além do mais, os dois contratos envolviam também pessoas distintas, ainda que fossem familiares dos aqui RR (vide facto provado em 18).
      Isto significa que, ainda que interligados ambos os contratos em referência pelo propósito de o Autor vir a adquirir todas as ditas fracções, apesar disso ambos os contratos eram distintos (contrato-promessa sobre as fracções A e B e arrendamento com opção de compra sobre as fracções C e D) e o cumprimento de cada um deles estava, por isso, sujeito a condições distintas – em função do clausulado em cada um deles -, o que o Autor e ora apelante não podia deixar de saber, pelo menos por via da comparação entre ambos os contratos.
      Portanto, segundo se julga, destes factos – e só estes se provaram – não é possível extrair, seja a que título for, que os RR sabiam que o sentido que o Autor dava à cláusula 4ª do contrato-promessa era aquele outro já exposto e por si defendido nos autos, ou seja, que essa cláusula deixava de ser aplicável em favor dos RR. e promitentes-vendedores se, ele, Autor (promitente-comprador) mostrasse interesse na celebração do contrato definitivo de compra e venda e procedesse à marcação de data para a celebração daquele prometido contrato, como, aliás, veio a fazer por carta de 2.12.2016, ou seja, logo dois dias depois da celebração do contrato-promessa (vide facto provado em 9).
      Nesta perspectiva, como bem questiona o Tribunal de 1ª instância na sentença recorrida, a vingar a tese interpretativa avançada pelo apelante, que sentido ou relevância poderia ter a dita cláusula 4ª do contrato-promessa na economia do dito contrato se, imediatamente após a celebração de tal contrato promessa (no limite, no dia imediatamente seguinte à sua outorga), pudesse o promitente-comprador, de forma unilateral (procedendo à marcação de data para a celebração da escritura pública de compra e venda das fracções), impor aos RR. o seu afastamento?
      Salvo o devido respeito, nenhum e, portanto, a dita cláusula não pode valer com o sentido que o apelante aqui defende, sentido esse que, ademais, corresponderia a uma radical alteração do contrato negociado e outorgado entre as partes (quanto à possibilidade do seu distrate, consensualmente aceite por ambos os outorgantes dessa cláusula) quando, como é consabido, os contratos devem ser pontual e integralmente cumpridos e só podem modificar-se (o seu conteúdo) por mútuo consentimento dos contraentes e não de forma unilateral, salvo nos casos e termos especialmente previstos na lei (artigo 406º, n.º 1, do Cód. Civil).
      Aqui chegados, a única questão que resta por decidir é saber se a interpretação que antes avançámos para as cláusulas do contrato promessa ora em discussão e, em especial, para a dita cláusula 4ª, colhe apoio na regra do artigo 236º, n.º 1, do Cód. Civil e na teoria da impressão do declaratário que, como já referimos, julgamos ser a que se mostra aplicável em face do concreto dissídio interpretativo por parte dos outorgantes no dito contrato-promessa.
      Nesta matéria, a regra interpretativa que decorre do n.º 1 do citado artigo 236º é a de que “a declaração vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do declaratário real, poderia deduzir do comportamento do declarante; ou, numa formulação próxima desta, “vale com o sentido que o declaratário real lhe daria se fosse uma pessoa razoável, diligente e de boa-fé”, salvo se o declarante não puder razoavelmente contar com esse sentido. [12]
      Dito de outra forma e como também referem P. LIMA, A. VARELA, op. cit., pág. 223, “A regra estabelecida no n.º 1, para o problema básico da interpretação das declarações de vontade, é esta: o sentido decisivo da declaração negocial é aquele que seria apreendido por um declaratário normal, ou seja, medianamente instruído e diligente, colocado na posição do declaratário real, em face do comportamento do declarante. Exceptuam-se apenas os casos de não poder ser imputado ao declarante, razoavelmente, aquele sentido (n.º 1), ou de o declaratário conhecer a vontade real do declarante (n.º 2).”
      Ora, tendo presente esta regra interpretativa e subsumindo-a ao caso dos autos, é nosso julgamento que um contraente medianamente diligente, instruído e de boa-fé (agindo de forma honesta, séria e honrando a palavra dada), colocado na concreta posição do aqui apelante/promitente-comprador, não podia deixar de colher do sentido da cláusula 4ª acima referida que a mesma consagrava, ainda que em sentido oposto aos seus interesses (que se reconhece poderiam ser outros, mas que o mesmo não terá logrado impor na negociação do contrato promessa ora em apreço) e em protecção dos distintos interesses dos ali promitentes-compradores (que, através daquela cláusula, quiseram – e conseguiram impor nas respectivas negociações que o precederam -, a possibilidade de manter em aberto a prerrogativa de não virem a vender as fracções dadas de arrendamento pelo prazo de 5 anos ao mesmo promitente-comprador), o direito potestativo daqueles promitentes vendedores colocarem termo às obrigações que para si decorriam, em condições de normalidade, da promessa de venda das mesmas em favor do ali promitente-comprador, mediante o distrate de tal promessa de venda e a exercer durante o período de 5 anos, sem direito a qualquer indemnização, como ali convencionado.
      Por conseguinte, em nosso ver, atento o sentido a extrair da cláusula 4ª e acima exposto, correspondendo esse sentido àquele que decorre da regra interpretativa consagrada no citado artigo 236º, n.º 1, do Cód. Civil, não existindo, neste conspecto do clausulado, qualquer lacuna que se imponha preencher à luz das regras do artigo 239º, do Cód. Civil e não se mostrando, ainda, evidenciada qualquer falha ou vício ao nível da formação ou exteriorização da vontade dos contraentes no contrato promessa, só se pode concluir, em sintonia com o decidido pelo Tribunal de 1ª instância, que a cláusula 4ª em apreço é plenamente válida e vinculativa para ambos os contraentes e nas condições acima expostas.
      Ora, sendo assim, como julgamos ser, naturalmente, como se decidiu em 1ª instância, não pode o apelante invocar o incumprimento (mora) dos promitentes-vendedores para efeitos de procedência da peticionada execução específica do ajuizado contrato-promessa, pois que, antes ainda da primeira data designada para a celebração da almejada escritura pública de compra e venda (15.04.2019) das fracções prometidas vender, os RR., promitentes-compradores, ora apelados, no uso do direito potestativo que também em seu favor foi consignado consensualmente na dita cláusula 4ª, procederam ao distrate do contrato-promessa, por meio de carta datada de 19.11.2018 e que o Autor recebeu – vide factos provados em 9 e 10 -, ficando, pois, os mesmos, nesse contexto, desvinculados de vir a outorgar na escritura pública de compra e venda para que foram intimados pelo Autor e aqui apelante.
      Dito de outra forma, mais simples: à data em causa (15.04.2019) – e abstraindo da questão de saber se o promitente-comprador podia agendar a celebração do contrato de compra e venda para aquela data (anterior ao prazo de duração mínima do contrato de arrendamento celebrado a 30.11.2016 – 5 anos) – já não existia obrigação dos RR. que os mesmos pudessem não cumprir e decorrente do ajuizado contrato promessa.
      Destarte, a presente acção e os pedidos formulados contra os RR. e aqui apelados não podiam deixar de ser julgados improcedentes, como bem se decidiu na sentença do Tribunal de 1ª instância, sendo certo que, quanto às rendas consignadas em depósito pelo Autor, as mesmas decorrem estritamente da obrigação que sobre si impendia de proceder a tal pagamento, enquanto contrapartida pela cedência do gozo das fracções, na pendência do respectivo contrato de arrendamento celebrado com os RR. a 30.11.2016 e para vigorar pelo prazo (mínimo) de cinco anos, ou seja, pelo menos, até 30.11.2021 – vide, ainda, o parágrafo segundo da cláusula 4ª, referida sob o ponto 6 dos factos provados.
      Sendo assim, não existe, de facto, qualquer fundamento legal para decretar a sua restituição ao Autor ou para decretar a sua entrega aos RR. e como pagamento parcial do preço da venda, como peticionado.
      E não se diga que, desta forma, se colocam em causa as justas expectativas que o Autor mantinha quanto à futura aquisição das fracções em causa ou, ainda, se colocam em crise os princípios da certeza e segurança jurídicas, pois que as legítimas expectativas do Autor só poderiam ser as que, com o exigível rigor, diligência e boa-fé, para si decorriam das cláusulas do contrato que consensualmente aceitou celebrar com os RR. e, ademais, com o devido respeito, constitui vector essencial da arrogada certeza e segurança no comércio jurídico a exigência do integral cumprimento dos contratos assinados e do que deles emerge em termos de obrigações ou direitos para ambas as partes, assim como a exigência de que a sua modificação unilateral apenas possa ter lugar nos casos previstos na lei, tudo conforme se decretou na sentença do Tribunal de 1ª instância e aqui se acompanha.
      Concluindo, improcede a apelação, o que se julga.
      **
      V. DECISÃO:
      Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação do Porto em julgar improcedente a apelação interposta pelo Autor AA, confirmando a sentença proferida pelo Tribunal de 1ª instância.
      **
      Custas pelo Autor/apelante, que ficou vencido – artigo 527º, n.ºs 1 e 2, do CPC.
      **
      Porto, 13.07.2022
      Jorge Seabra
      Pedro Damião e Cunha
      Fátima Andrade

    (O presente acórdão não segue na sua redacção o Novo Acordo Ortográfico)


    [1] Vide, neste sentido, F. AMÂNCIO FERREIRA, “Manual dos Recursos em Processo Civil”, 8ª edição, pág. 147, A. ABRANTES GERALDES, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 2ª edição, pág. 92-93.
    [2] ANTUNES VARELA, “Das Obrigações em Geral”, I volume, 6ª edição, pág. 301-302; Vide, no mesmo sentido, por todos, J. CALVÃO da SILVA, “Sinal e Contrato Promessa”, 2017, pág. 13-15 e ANA AFONSO, anotação ao artigo 410º, do Código Civil, in “Comentário ao Código Civil – Direito das Obrigações; Das obrigações em Geral”, UCE, 2018, pág. 78-85.
    [3] Sobre o regime do incumprimento do contrato-promessa e nos termos por nós antes expostos em termos gerais, vide, ainda que não em termos totalmente coincidentes, A. VARELA, op. cit., pág. 319-330 e 336-338, J. CALVÃO da SILVA, op. cit., pág. 85-145, ANA AFONSO, op. cit., anotação ao artigo 442º, do Código Civil, pág. 165-171.
    [4] Vide, ainda, neste sentido, por todos, a vasta jurisprudência referida por J. CALVÃO da SILVA, op. cit., pág. 137, nota 179.
    [5] J. CALVÃO da SILVA, “Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória”, Separata do volume XXX do Suplemento ao BFDC, 1987, pág. 152.
    [6] Vide, neste sentido, por todos, L. CARVALHO FERNANDES, “Teoria Geral do Direito Civil”, II volume, 5ª edição, pág. 447-448 e PEDRO PAIS VASCONCELOS, “Teoria Geral do Direito Civil”, 7ª edição, pág. 471-472.
    [7] Vide, neste sentido, A. MENEZES CORDEIRO, “Tratado de Direito Civil – I – Parte Geral”, 2005, pág. 760-763.
    [8] Vide, neste sentido, por todos, C. MOTA PINTO, “Teoria Geral do Direito Civil”, 4ª edição, pág. 443, A. VARELA, P. LIMA, “Código Civil Anotado”, I volume, 4ª edição, pág. 223 e, por todos, AC STJ de 16.10.2008, relator Sr. Juiz Conselheiro Mário Cruz ou AC STJ de 7.07.2009, relator Sr. Juiz Conselheiro Sebastião Póvoas, ambos disponíveis in www.dgsi.pt
    [9] Vide, neste sentido, por todos, EVARISTO MENDES/FERNANDO SÁ, “Comentário ao Código Civil – Parte Geral”, UCE, 2014, pág. 540.
    [10] Vide, neste sentido, por todos, C. MOTA PINTO, op. cit., pág. 445, EVARISTO MENDES/FERNANDO SÁ, op. cit., pág. 540, C. FERREIRA de ALMEIDA, “Contratos IV”, 2ª edição, pág. 270 e P. LIMA, A. VARELA, op. cit., pág. 274.
    [11] Vide sobre a revogação do contrato e, em particular, a sua revogação unilateral, PEDRO ROMANO MARTINEZ, “Da Cessação do Contrato”, 2ª edição, pág. 111-115.
    [12] EVARISTO MENDES, FERNANDO SÁ, in “Comentário ao Código Civil”, cit., pág. 541.

    Processo n.º 15174/19.9T8PRT.P1 – Apelação
    Juízo Central Cível do Porto – Juiz 4.
    Relator: Jorge Seabra
    1º Juiz Adjunto: Desembargador Pedro Damião e Cunha
    2º Juiz Adjunto: Desembargadora Maria de Fátima Andrade

    15174/19.9T8PRT.P1
    Nº Convencional: JTRP000
    Relator: JORGE SEABRA
    Descritores: CONTRATO-PROMESSA DE COMPRA E VENDA
    LIBERDADE CONTRATUAL
    DISTRATE UNILATERAL
    INTERPRETAÇÃO DO CONTRATO

    RP2022071315174/19.9T8PRT.P1
    Data do Acordão: 07/13/2022
    Votação: UNANIMIDADE

    https://advocaciapinheiro.com/
  • Código do Notariado e função notarial

    A função notarial destina-se a dar forma legal e conferir fé pública aos actos jurídicos extrajudiciais. É o que diz o 1º artigo, nº. 1, do Código Notarial.

    Ainda sobre a função notarial, o nº 2, do mesmo artigo preconiza que: “pode o notário prestar assessoria às partes na expressão da sua vontade negocial“.

    Portanto, assume particular relevância a consagração expressa da assessoria jurídica a prestar pelo notário às partes, com vista à conformação da vontade negocial na realização dos actos da sua competência, como, aliás, está registado no sumário da aprovação do Código do Notariado.

    O notário é o órgão próprio da função notarial. Excepcionalmente, desempenham funções notariais, os agentes consulares portugueses; os notários privativos das câmaras municipais, dentre outros.

    Compete, em geral, ao notário redigir o instrumento público conforme a vontade das partes, a qual deve indagar, interpretar e adequar ao ordenamento jurídico, esclarecendo-as do seu valor e alcance.

    O nº. 2, do artigo 4º, do Código do Notariado prevê que, em especial, compete ao notário, designadamente:

    a) Lavrar testamentos públicos, instrumentos de aprovação, depósito e abertura de testamentoscerrados e de testamentos internacionais;
    b) Lavrar outros instrumentos públicos nos livros de notas e fora deles;
    c) Exarar termos de autenticação em documentos particulares ou de reconhecimento da autoria daletra com que esses documentos estão escritos ou das assinaturas neles apostas;
    d) Passar certificados de vida e identidade e, bem assim, do desempenho de cargos públicos, degerência ou de administração de pessoas colectivas;
    e) Passar certificados de outros factos que tenha verificado;
    f) Certificar, ou fazer e certificar, traduções de documentos;
    g) Passar certidões de instrumentos públicos, de registos e de outros documentos arquivados, extrairpúblicas-formas de documentos que, para esse fim, lhe sejam presentes ou conferir com osrespectivos originais e certificar as fotocópias extraídas pelos interessados;
    h) Lavrar instrumentos para receber a declaração, com carácter solene ou sob juramento, dehonorabilidade e de não se estar em situação de falência, nomeadamente, para efeitos dopreenchimento dos requisitos condicionantes, na ordem jurídica comunitária, da liberdade deestabelecimento ou de prestação de serviços;
    i) Lavrar instrumentos de actas de reuniões de órgãos sociais;
    j) Transmitir por telecópia, sob forma certificada, o teor dos instrumentos públicos, registos e outrosdocumentos que se achem arquivados no cartório, a outros serviços públicos perante os quais tenhamde fazer fé e receber os que lhe forem transmitidos, por esses serviços, nas mesmas condições;
    l) Intervir nos actos jurídicos extrajudiciais a que os interessados pretendam dar garantias especiaisde certeza ou de autenticidade;
    m) Conservar os documentos que por lei devam ficar no arquivo notarial e os que lhe forem confiadoscom esse fim.
    3 – Salvo disposição legal em contrário, o notário pode praticar, dentro da área do concelho em quese encontra sediado o cartório notarial, todos os actos da sua competência que lhe sejamrequisitados, ainda que respeitem a pessoas domiciliadas ou a bens situados fora dessa área.
    4 – A solicitação dos interessados, o notário pode requisitar por qualquer via, a outros serviçospúblicos, os documentos necessários à instrução dos actos da sua competência.

    Documentos e execução dos actos notariais

    Os documentos lavrados pelo notário, ou em que ele intervém, podem ser autênticos, autenticados ou ter apenas o reconhecimento notarial (artigo 35º).

    Documentos autênticos

    São autênticos os documentos exarados pelo notário nos respectivos livros, ou em instrumentosavulsos, e os certificados, certidões e outros documentos análogos por ele expedidos.

    Documentos autenticados

    São autenticados os documentos particulares confirmados pelas partes perante notário.

    Reconhecimento notarial

    Têm reconhecimento notarial os documentos particulares cuja letra e assinatura, ou sóassinatura, se mostrem reconhecidas por notário.

    Adriano Martins Pinheiro é advogado em Portugal, escritor e formador

    tags: código do notariado, registo predial, conservatória do registo predial .
  • How does the purchase/sell processo work?

    The Property Purchase / Sale requires requires the analysis of the property documents. It is essential that all documentation of the property is valid.
    Therefore, it is recommended that qualified professionals, with experience in real estate law, be responsible for verifying all real estate documentation, including certificates related to the Tax Authority, Land Register Office, Municipal Council, among others (in Portuguese: Autoridade Tributária, Conservatória de Registo Predial e Câmara Municipal).

    In Portugal, only lawyers and solicitors are authorized and licensed to provide legal advice on the purchase/sale of real estate and leases.

    Real estate agents cannot and should not provide legal advice, as they are not qualified to do so. The real estate agent’s job is just to do the real estate mediation.

    Property documentation must be delivered to the buyer. It is recommended to draw up a pre-contract that contains the business conditions, such as price, payment, conditions, down payment, etc.

    The law in Portugal determines that the contract of purchase/sale of the property must be registered by public deed or by private document, authenticated by a lawyer or solicitor (PDA).

    Adriano Martins Pinheiro is a lawyer in Portugal.

    tags: real state lawyer portugal, real state law

    .

  • O senhorio pode rejeitar inquilinos que tenham animais de estimação?

    O senhorio pode rejeitar inquilinos que tenham animais de estimação?

    Não existe qualquer lei que trate do assunto. Portanto, o caso é decido conforme o entendimento dos tribunais, quando lá chegam.

    Existem decisões favoráveis ao inquilino, no sentido de permitir a permanência do animal no imóvel arrendado.

    Saliente-se que, o Código Civil de Portugal proíbe a discriminação em razão de sexo, ascendência ou origem étnica, língua, território de origem, nacionalidade, religião, crença, convicções políticas ou ideológicas, género, orientação sexual, idade ou deficiência. Mas, não trata de animais de estimação.

    Muitos senhorios proíbem animais de estimação no imóvel por temerem que estes destruam o imóvel ou a mobília, seja com urina, seja com mordidas.

    O mesmo receio – de que o animal destrua o imóvel ou a mobília – fazem com que os senhorios aumentem o valor da caução.

    Adriano Martins Pinheiro é advogado em Portugal, escritor e formador

    https://advocaciapinheiro.com/

    tags: contrato de arrendamento, aluguel, pets, animais em condomínio, lei, código civil, proibição de animais, discriminação

  • A importância da segurança e agilidade para os consultores imobiliários

    A importância da segurança e agilidade para os consultores imobiliários

    Há dois pontos importantes para imobiliárias e consultores imobiliários em relação à venda de um imóvel; quais sejam: segurança do negócio e agilidade no processo.

    Segurança do negócio

    Para um processo de venda seguro, deve haver um profissional capaz de analisar todos os documentos necessários à venda, principalmente quando existe financiamento bancário envolvido.

    O profissional deve, em primeiro lugar, saber quais são os documentos necessários, como providenciá-los e, além disso, analisá-los de uma forma técnica.

    Há diversos fatores que tornam um negócio imobiliário inseguro, tais como: ilegitimidade do proprietário, imóvel com ônus, falta de certidões, licenças, desacordo com o código do registo predial etc.

    A chamada advocacia preventiva ou due diligence imobiliária tem por objetivo proteger o negócio, evitando problemas futuros a todos os envolvidos.

    A agilidade no processo de venda

    Tendo em vista que a análise preventiva é um processo burocrático e complexo, é importante que o profissional responsável tenha um fluxo de trabalho capaz de atender os interessados de forma ágil.

    Em muitos casos, há um pequeno grupo de profissionais para muitos consultores imobiliários, o que pode gerar a demora e, consequentemente, a perda do negócio.

    Conclusão

    Portanto, a segurança nas negociações imobiliárias e a rapidez no processo de análise são fatores indispensáveis aos profissionais do ramo imobiliário.

    O autor do texto, Adriano Martins Pinheiro, é advogado em Portugal, escritor e formador

    tags: certidão de registo predial, caderneta predial, licença de utilização, certificado energético, mediação imobiliária